A última desenhadora do Museu Nacional de Arqueologia?
Deixará o País de possuir arquivos de memória capazes de executarem as suas missões, verdadeiros museus nacionais desde logo, geridos com sentido de entrega à causa pública
A estória que vou contar, conto-a na primeira pessoa, porque dentro dos limites da curta vida que cada um leva, no trabalho a vivi e vivo, tendo o resto podido observar nas paredes e pavimentos, nas estantes e nas reservas onde se encerra quem me precedeu e me interpela na sua estrepitante mudez. Quando contada a outros, disseram-me que há nela moral de uso geral. Deveria por isso ser partilhada mais amplamente. Realmente, ela dá conta do que queremos fazer com os nossos arquivos memorais: consumi-los em nome apenas da parasitagem hedonista hodierna ou interrogá-los constantemente, potenciando o seu poder criativo, e já agora conservá-los para aqueles que virão depois de nós?
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A estória que vou contar, conto-a na primeira pessoa, porque dentro dos limites da curta vida que cada um leva, no trabalho a vivi e vivo, tendo o resto podido observar nas paredes e pavimentos, nas estantes e nas reservas onde se encerra quem me precedeu e me interpela na sua estrepitante mudez. Quando contada a outros, disseram-me que há nela moral de uso geral. Deveria por isso ser partilhada mais amplamente. Realmente, ela dá conta do que queremos fazer com os nossos arquivos memorais: consumi-los em nome apenas da parasitagem hedonista hodierna ou interrogá-los constantemente, potenciando o seu poder criativo, e já agora conservá-los para aqueles que virão depois de nós?
Tudo poderia, pois, começar por “era uma vez”…
Era uma vez, um homem, José Leite de Vasconcelos, que moveu céus e terra em finais de oitocentos para fazer um museu que contasse as origens remotas do “ser português”, muito mais do que do ser Portugal. Conseguiu finalmente instalá-lo em Belém, na ala recém-reconstruída do Mosteiro dos Jerónimos, que na altura e por influência do positivismo e do evolucionismo progressistas se preferiu politicamente consagrar a tal narrativa, em detrimento da que contasse a grandeza imperial. Passaram os anos, as décadas, os regimes, caminhou-se da Monarquia para a República, desta para a Ditadura Militar e o Estado Novo… e o “Museu de Belém” (assim simplesmente chamado porque não havia outro nas redondezas) foi singrando, reunindo arquivos da terra, promovendo ou até criando novos campos de estudo e novos oficiais dos mesmos. Chegou a Democracia e com ela todo um novo entusiasmo pelo estudo libertador do passado, como condição da libertação do presente e da garantia da liberdade no futuro.
É aqui que o contador da estória entra em cena. Nesse museu, no museu onde trabalho faz agora precisamente quatro décadas, havia, quando entrei, guardas de dia e de noite, estes com cães e licença de porte de arma, havia auxiliares de limpeza (as primeiras cuidadoras das colecções, como enfaticamente dizia Adília Alarcão, uma das pessoas com quem, mesmo sem disso me ter dado conta, mais aprendi a amar os museus pelas pequenas coisas do dia-a-dia), havia conservadores para várias colecções, havia arqueólogos com actividade de campo ao serviço do museu (eu próprio, era um deles), havia telefonistas, havia técnicos de laboratório (inclusive uma engenheira química, isto para além do sector de arqueociências, com diferentes especialidades, como a geologia ou a paleobotânica), havia secretaria com chefia própria, havia bibliotecária, havia fotógrafo, havia almoxarife, havia marceneiro e havia carpinteiro, havia, havia… éramos quase uma centena e apenas recorríamos a aquisições de serviços externas quando realmente justificadas, em situações técnicas (caso do transporte de peças para o exterior) ou para alargar o leque da criatividade (caso dos projectos de exposições).
Havia também desenhadores (no plural), conforme a longa, secular, tradição de uma Casa por onde passaram Guilherme Gameiro, Francisco Valença, João Saavedra Machado, Dario de Sousa… E até o grande Stuart aí colaborou, ocasionalmente. Em algumas décadas do século XX, especialmente durante o Estado Novo, era no “Museu de Belém” (ou “Museu Etnológico”, que ainda ostentava no nome, conforme o baptismo que lhe deu o fundador) que se reuniam alguns destes mestres e aí conversavam, trocavam experiências, talvez também ideias, como o demonstram numerosas caricaturas do Sempre Fixe, resistentes dentro dos limites que o lápis azul e a tesoura (repetidamente representados por Valença) o deixavam. Diversas técnicas de representação gráfica em arqueologia foram testadas, desenvolvidas, no que constituiu uma escola prática. Os álbuns desses mestres, que no museu se guardam, constituem por si sós tesouros nacionais. E nunca é demais lembrar que, em Arqueologia, seja de campo seja de gabinete, incluindo registo de peças em museu, o desenho é muito mais importante do que a fotografia: esta, para usar a expressão de Mortimer Wheeler, “é mentirosa”, porque dá a errada (e ingénua) sensação de autenticidade; aquele é verdadeiro, porque expõe sem filtros a interpretação do autor, desenhador e arqueólogo.
Conto tudo isto porque se reformou por estes dias a Helena Figueiredo, aquela que poderá talvez ter sido a última desenhadora do Museu Nacional de Arqueologia, já que não se vê no horizonte nenhuma possibilidade de inverter a caminhada para o abismo em que os Museus Nacionais se encontram em matéria de pessoal. Abismo que não é só pela falta do mais aparente (vigilantes-recepcionistas), mas pela efectiva falta de pensamento estratégico quanto ao que é ser museu e mormente museu nacional. Éramos próximo de uma centena há quatro décadas, a grande maioria com contratos de trabalho estáveis; cobríamos quase todos os sectores de especialidade necessários à realização da missão do museu e confiávamos na perenidade intergeracional da instituição. Hoje seremos pouco mais de três dezenas, recorremos a torto e a direito a externalidades, à exploração dos mais jovens (bolseiros, estagiários…), à precariedade em geral e até, cada vez mais, ao “voluntariado”…
Pergunto-me o que virá a seguir. A privatização mercantilista dos museus nacionais que possam gerar receita, convertidos em negócios destinados a distribuir lucro; ou, mais pudicamente, a sua semi-privatização, entregues a sociedades de capitais públicos assentes em sistemas de bilhética agressivos (insensíveis à dimensão cidadã), capazes, no melhor dos cenários, de potenciar essas “ilhas de abundância”, conservando e promovendo os bens à sua guarda – ou meras centrais de emprego de “amigos” e “correligionários”, rodízios de mãos que se lavam mutuamente, no pior dos casos?
E pergunto-me sobre tudo o resto, o que inexoravelmente “não dá dinheiro”. Ficará simplesmente ao abandono, entregue à sua apagada e vil tristeza? Deixará o País de possuir arquivos de memória capazes de executarem as suas missões, verdadeiros museus nacionais desde logo, geridos com sentido de entrega à causa pública, com respeito por todos os que nos precederam, todos os que hão-de vir… e para nossa própria felicidade, afinal?
Ou tudo isto não passa de inquietações sem sentido, inerentes à idade, à velhice, à aproximação da reforma e decorrentes de um sentido de patriotismo emancipador, porventura fora de moda?