Há uma Ave Rara à solta no Curtas Vila do Conde

O filme de Vasco Saltão é, com Dia de Festa de Sofia Bost, a revelação da competição nacional de 2019, safra razoavelmente morna.

Foto
Ave Rara, de Vasco Saltão DR

Dezasseis filmes a concurso na competição nacional do Curtas Vila do Conde 2019, 13 estreias mundiais – e o “barómetro” pouco subiu da mediania ao longo das cinco sessões. Numa altura em que a curta-metragem portuguesa brilha alto nos festivais internacionais, quem usasse apenas o concurso nobre do certame como “fasquia” da produção não ficaria, certamente, muito impressionado. O que não significa que ela está estagnada ou inerte. Continuam a fazer-se filmes, continua a haver ideias e vontade de filmar – e a “divisão do mal” (a produção de curtas) pelas múltiplas “aldeias” (os festivais) torna mais difícil que um festival seja exemplificativo de toda uma produção.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Dezasseis filmes a concurso na competição nacional do Curtas Vila do Conde 2019, 13 estreias mundiais – e o “barómetro” pouco subiu da mediania ao longo das cinco sessões. Numa altura em que a curta-metragem portuguesa brilha alto nos festivais internacionais, quem usasse apenas o concurso nobre do certame como “fasquia” da produção não ficaria, certamente, muito impressionado. O que não significa que ela está estagnada ou inerte. Continuam a fazer-se filmes, continua a haver ideias e vontade de filmar – e a “divisão do mal” (a produção de curtas) pelas múltiplas “aldeias” (os festivais) torna mais difícil que um festival seja exemplificativo de toda uma produção.

Com estas ressalvas todas, a edição 2019 do festival confirmou, entre a escolha disponível e a selecção dos programadores​, a impressão de safra morna que as primeiras sessões nos tinham deixado. Há, ainda assim, duas descobertas a levar daqui: de Sofia Bost e do seu Dia de Festa já tínhamos falado, fale-se agora de Vasco Saltão e de Ave Rara. A par do Destiny Deluxe de Diogo Baldaia (embora noutro registo), Ave Rara foi o outro filme fracturante da competição, dividindo as reacções – o que já por si, como no caso de Baldaia, é significativo.

Aqui, contudo, o que se joga está longe da dissociação narrativa para a era do telemóvel de Destiny Deluxe. Saltão procura uma abordagem ancestral, quase naturalista, à fé e ao onírico, ancorada na textura telúrica de uma pequena aldeia alentejana. Praticamente sem diálogos e contada com uma evidente segurança (o plano do café da aldeia é assombroso), deixando sempre planar um mistério que nunca fica resolvido por inteiro, Ave Rara é um bloco de granito que deixa pistas para o espectador.

Do que mais se viu a concurso, Colmeal, de Márcio Laranjeira e Sérgio Brás d’Almeida, é um esboço de filme que precisaria de mais tempo ou trabalho para ganhar força (partilha, curiosamente, com Ruby, de Mariana Gaivão, a presença como espada de Dâmocles dos fogos florestais); e Red Hill, de Laura Carreira, é um exercício escolar certinho mas anónimo que poderia fazer sentido como primeira parte de um filme de Ken Loach.

A única presença de animação foi Purpleboy, de Alexandre Siqueira, uma curiosa fábula surreal muito seventies cuja alegoria sociopolítica parece feita à medida dos nossos dias, evocando os universos gráficos de Moebius e do Planeta Selvagem, de René Laloux. E o único documentário tradicional da competição foi 18, de Rui Esperança, olhar discreto mas seguro sobre duas estudantes de Viana de Castelo em tempo de fim de liceu e entrada na universidade que pinta um retrato atento de uma geração que se pergunta o que lhe vai restar quando entrar na vida adulta.

E houve, claro, Gabriel Abrantes, que continua na senda da gentil comédia fantástica com Les Extraordinaires mésaventures de la jeune fille de pierre, espécie de Uma Noite no Museu em versão gilets jaunes, em que uma estátua do Louvre ganha vida à noite e sai por Paris fora atrás de um dos guias, ganhando no processo consciência revolucionária de classe. Estamos no mesmo território de A Brief History of Princess X, Os Humores Artificiais e Diamantino – ou seja, de uma ideia de comédia decorrente do momento em que vivemos – e confirma-se uma maior segurança de Abrantes no domínio do ritmo e do tempo do humor.

Foto
Les extraordinaires mésaventures de la jeune fille de pierre, de Gabriel Abrantes DR

Mas a graça que estas aventuras têm não é a mesma do futebolista dos cachorrinhos felpudos nem do drone apaixonado, como se o realizador estivesse a mapear metodicamente um território até já nada haver para explorar. O que Abrantes quis aqui fazer, fê-lo melhor, mais incisivo e mais divertido o seu colaborador Benjamin Crotty em Le discours glorieux d’acceptation de Nicolas Chauvin – um dos vários filmes que provaram como, este ano, o nível médio da competição internacional do Curtas foi bastante mais elevado do que o da portuguesa.