Seul e Tóquio em rota de colisão por causa do passado

A exigência sul-coreana de novas compensações financeiras por trabalhos e prostituição forçados abriu uma crise diplomática que pode evoluir para uma guerra comercial entre dois dos principais aliados dos Estados Unidos na Ásia Pacífico.

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A reunião desta sexta-feira não conseguiu inverter o escalar da tensão entre dois vizinhos que sempre se olharam com desconfiança Reuters/POOL

Décadas após o fim da governação colonial japonesa, as relações entre Tóquio e Seul voltam a estar assombradas pelo passado. A exigência sul-coreana de novas compensações financeiras por trabalhos e prostituição forçados no período da ocupação, abriu uma crise diplomática que pode evoluir para uma guerra comercial entre dois dos principais aliados dos Estados Unidos na Ásia Pacífico.

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Décadas após o fim da governação colonial japonesa, as relações entre Tóquio e Seul voltam a estar assombradas pelo passado. A exigência sul-coreana de novas compensações financeiras por trabalhos e prostituição forçados no período da ocupação, abriu uma crise diplomática que pode evoluir para uma guerra comercial entre dois dos principais aliados dos Estados Unidos na Ásia Pacífico.

Reunidos em Tóquio, representantes dos dois países não tiveram sucesso na negociação desta sexta-feira para desbloquear o impasse diplomático que se arrasta desde o ano passado, quando a justiça sul-coreana decidiu que empresas japonesas teriam que pagar indemnizações relativas ao período colonial. 

A crise escalou e arrastou-se com Tóquio - acusa Seul - a passar a “guerra” para o plano económico. Na semana passada, o Japão impôs controlos à exportação de materiais fundamentais para as indústrias tecnológica (chips e smartphones) e de semicondutores sul-coreanas, duas das principais indústrias da economia nacional – a medida não terá impacto imediato por as empresas terem algum stock.

O Governo japonês está a ponderar excluir o mercado sul-coreano da lista de mercados de confiança, afectando bastantes mais industrias. A avançar, seria também um duro golpe para a própria economia japonesa, fortemente dependente do mercado sul-coreano. Todavia, é mais um trunfo contra um vizinho de quem sempre desconfiou.

Na última semana, ambos os lados entrincheiraram-se nas suas posições: Seul, entre pedidos de se encontrar uma solução diplomática, não abdica de exigir novas compensações e acusa Tóquio de responder com mais retaliações. O Governo japonês recusa mais pagamentos e defende os controlos de exportação por razões de segurança.

E a pressão da política interna não ajuda nem o Presidente sul-coreano Moon Jae-in, nem o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe.

A pouco mais de um mês do feriado de independência sul-coreano, Moon, eleito com a promessa de reconstruir as relações diplomáticas, com a permissa de que o Japão admitiria os seus erros históricos, não pode parecer fraco junto do seu eleitorado. Abe, habituado a usar o nacionalismo para conquistar votos, está a pouco mais de uma semana de disputar eleições legislativas, a 21 de Julho. Qualquer cedência será prejudicial a ambos.

“Os líderes de ambos os lados estão contra qualquer tipo de reaproximação política”, explicou Berkshire Miller, professor do Instituto de Assuntos Internacionais japonês ao Nikkei Asian Review. “O sentimento no Japão é que Moon é negativo e Abe é persona non grata na Coreia do Sul”.

Colonialismo e guerra

A desconfiança entre os dois países vizinhos tem origem há mais de um século. Quando as botas do Exército Imperial japonês conquistaram, em 1910, a Península Coreana, forçando centenas de milhares de coreanos a trabalharem em empresas japonesas, na maioria das vezes em duríssimas condições. Mais tarde, durante a II Guerra Mundial, os militares obrigaram entre 50 mil a 200 mil coreanas – as chamadas Mulheres de Conforto – a prostituir-se. Práticas coloniais que ainda assombram as relações entre os dois países.

Houve tentativas para se ultrapassar esse legado. Em 1965, Seul e Tóquio assinaram um acordo internacional que, além de estabelecer relações diplomáticas, estipulava que o Japão pagaria uma compensação de 300 milhões de dólares (hoje seriam 2,4 mil milhões) à Coreia do Sul, com outros 200 milhões a serem emprestados com baixas taxas de juro. Em troca, todas as reivindicações sul-coreanas ficariam “completa e finalmente resolvidas”.

Esse dinheiro, porém, foi usado pelo Governo sul-coreano da época para industrializar o país, transformando-o numa potência económica regional. As vítimas nada receberam.

Em 2018, um tribunal sul-coreano deliberou que as empresas japonesas que lucraram com o trabalho forçado, entre elas a Mitsubhishi Heavy Industries e a Nippon Steel, pagassem indemnizações e, quando a ordem foi contestada, os seus activos foram arrestados. O prazo para a Mitsubhishi Heavy Industries pagar as indemnizações termina esta segunda-feira, segundo a Jiji News.

Mais de sete décadas depois, quando apenas uma dúzia de Mulheres de Conforto continuam vivas, os dois países acordaram na criação de um fundo de 7,5 milhões de dólares de compensação e um pedido de desculpas japonês. O acordo foi considerado por ambas as partes “final e irreversível” - foi negociado em segredo e sem que nenhuma vítima fosse consultada, com muitos sul-coreanos a oporem-se. Em protesto, as vítimas recusaram as indemnizações e, em 2017, quando Moon tomou posse, Seul acabou com o fundo, enfurecendo Tóquio. Estava dado o tiro de partida para o degradar das relações diplomáticas entre dois países aliados dos Estados Unidos e pilares da sua política de segurança e influência na região.

Disputa que ameaça aliança regional

Recusando o pedido de intervenção sul-coreano e cedendo aos desejos japoneses, os Estados Unidos têm optado por ficar à margem do conflito.

Desde a viragem da política externa americana para a Ásia-Pacífico, com Barack Obama em 2011, que Washington tem apostado na aproximação militar entre os seus aliados para travar o expansionismo chinês e, mais recentemente, o programa nuclear norte-coreano.

Porém, a guerra comercial com a China aberta pelo actual Presidente dos EUA, Donald Trump, e a estratégia usada nas negociações com Pyongyang sobre o nuclear tem gerado desconfianças entre os aliados regionais, que temem que os seus interesses e segurança não estejam a ser salvaguardados. Cada um desenvolve uma política externa à sua medida, adensando as diferenças entre Seul e Tóquio.

“As diferenças entre Seul e Tóquio sobre o problema norte-coreano aprofundaram-se. Os interesses japoneses raramente se coadunam com os da Coreia do Sul no que diz respeito às negociações de desnuclearização”, escreveu Sheila Smith, especialista em política japonesa, no Council on Foreign Relations.

Junte-se a este cenário os relatos na imprensa japonesa de que o Governo de Tóquio acredita que matérias-primas vendidas a Seul acabaram na Coreia do Norte - uma acusação que levou o Presidente Moon Jae-in a pedir uma investigação às Nações Unidas. 

Sobre a China, continua Smith, os dois países também se têm afastado: “Quando Seul e Pequim se juntam nas críticas ao comportamento pré-II Guerra Mundial, irritam profundamente Tóquio”. “As relações negativas entre o Japão e a Coreia do Sul vão beneficiar regionalmente a China, a quem não agrada uma relação próxima entre Seul e Tóquio que possa evoluir para uma quase aliança”, explicou Ryo Hinata-Yamaguchi, professor na Universidade de Pusan, na Coreia do Sul, ao South China Morning Post.

O conflito sobre o passado entre a Coreia do Sul e o Japão tem implicações geopolíticas e ameaça ter reprecurssões económicas globais. “Nenhum dos lados pode resolver este assunto”, disse à Bloomberg o antigo diplomata japonês Kunihiko Miyake, para quem o ponto de viragem só vai chegar quando os negócios e os mercados financeiros decidirem intervir. “Só então irão reconsiderar”.