Caligari, um caso muito sério no Curtas Vila do Conde

À volta do centenário da rodagem de O Gabinete do Dr. Caligari, o festival propõe múltiplas leituras de um clássico do expressionismo alemão.

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O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene DR

“Não é a obra-prima do cinema expressionista alemão”, segundo o professor Abílio Hernandez Cardoso, “nem sequer o primeiro filme a trabalhar ideias expressionistas” – para isso, avança o académico, teríamos de ir buscar filmes de Murnau ou Fritz Lang, ou de voltar atrás, ao pioneiro O Estudante de Praga, de 1913. Mas O Gabinete do Dr. Caligari, realizado em 1919 por Robert Wiene e estreado em Berlim em 1920, é visto como o ponto zero do cinema expressionista alemão, para o qual o realismo já não era um modo aceitável de olhar para o mundo depois da carnificina da Primeira Guerra Mundial; e uma espécie de premonição do regime nazi que viria a mergulhar o mundo na Segunda Guerra Mundial.

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“Não é a obra-prima do cinema expressionista alemão”, segundo o professor Abílio Hernandez Cardoso, “nem sequer o primeiro filme a trabalhar ideias expressionistas” – para isso, avança o académico, teríamos de ir buscar filmes de Murnau ou Fritz Lang, ou de voltar atrás, ao pioneiro O Estudante de Praga, de 1913. Mas O Gabinete do Dr. Caligari, realizado em 1919 por Robert Wiene e estreado em Berlim em 1920, é visto como o ponto zero do cinema expressionista alemão, para o qual o realismo já não era um modo aceitável de olhar para o mundo depois da carnificina da Primeira Guerra Mundial; e uma espécie de premonição do regime nazi que viria a mergulhar o mundo na Segunda Guerra Mundial.

O centenário de Caligari, que começou como uma simples história policial inspirada por uma visita a uma feira e pelas experiências de guerra dos argumentistas Carl Mayer e Hans Janowitz, parece cair que nem ginjas nos nossos dias de turbilhão político e social. Para o marcar, o Curtas Vila do Conde começou por mostrar, logo na abertura, o filme de Wiene, na versão imaculadamente restaurada pela F. W. Murnau Stiftung em 2014, com uma nova banda-sonora criada por Tiago Cutileiro e Marta Navarro. Acompanhou essa projecção com a inauguração da exposição O Caso Caligari, com obras de Daniel Blaufuks, Eduardo Brito, Rainer Kohlberger e Jonathan Uliel Saldanha, que estará patente na Solar – Galeria de Arte Cinemática até 7 de Setembro, e com uma palestra a cargo de Hernandez Cardoso, do curador Nuno Faria e do psiquiatra, crítico e colaborador do PÚBLICO António Roma Torres.

Pelo meio desta multiplicidade de propostas, uma coisa torna-se desde logo evidente; cem anos depois, O Gabinete do Dr. Caligari continua a falar aos espectadores dos nossos dias com uma força extraordinária. No essencial, é um filme de género – um policial quase gótico sobre um misterioso assassino em série que surge numa pequena cidade, ao mesmo tempo que um sinistro feirante exibe um homem em sonambulismo permanente. Mas o surrealismo angular e esquinado do trabalho cenográfico, conjugado com a estilização das interpretações, torna Caligari outra coisa: uma espécie de sonho mau, que se vai aos poucos transformando num pesadelo tolhido, como se Wiene quisesse que o espectador caísse, também ele, no misterioso transe de Cesare, o sonâmbulo, e desse por si prisioneiro de areias movediças ou de uma teia de aranha.

Foi essa dimensão onírica que Tiago Cutileiro e Marta Navarro exploraram na sua sonorização do filme. Mais do que uma partitura, o que a dupla criou foi um elaborado ambiente sonoro onde notas musicais e efeitos sonoros se cruzaram; um design de atmosferas que sublinhou com eficácia os “estados alterados” induzidos pela presença maléfica do doutor Caligari.

Por aí fazemos a ponte para uma das quatro peças patentes na Solar: DDDM, de Rainer Kohlberger, presença regular nas secções mais experimentais do Curtas, é um loop audiovisual à volta, precisamente, do transe e do acesso ao invisível. Inspirado no diálogo permanente entre a física e a filosofia, DDDM pega na ideia da “matéria negra” algo que sabemos que existe mas que não podemos ver nem saber como, ou o que é. Uma sucessão de luzes e cores sonorizada por um silvo que parece mudar de tom e intensidade com cada alteração de imagem, a instalação de Kohlberger sugere uma indução de transe para aceder àquilo que não se vê. De certo modo, é precisamente isso que todos os olhares ao longo da exposição trabalham: o que não se vê, o que está escondido entre ou por trás das imagens, as múltiplas leituras que o filme abre, mesmo hoje, e o que elas revelam sobre o mundo em que ele foi feito e o mundo em que vivemos.

Não vamos mais longe: no curto loop para três ecrãs de Eduardo Brito, Curiosidades do Gabinete, o autor de Penúmbria procura na Berlim de hoje os traços da Berlim de há cem anos – os estúdios onde Caligari foi filmado (já não existem) e o cinema da Marmorhaus, onde o filme se estreou (é uma loja da Zara). Uma “colagem de contradições”, nas palavras de Brito, à volta da ideia da ausência, e também uma metáfora algo irónica do conceito de turismo; mas o que passa, sobretudo, é a marca imaterial que uma obra de arte deixa. Dos locais de Caligari nada resta (mesmo que haja uma Caligariplatz em Berlim), mas o filme, e as suas ideias, sobrevivem.

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Uma premonição?

Se houve coisa que muitos apontaram ao longo destes dias, foi a dimensão política que Caligari ganhou, sobretudo a partir do ensaio do filósofo Siegfried Kracauer, De Caligari a Hitler. É por essa dimensão abertamente política que entra a proposta de Daniel Blaufuks, De Caligari a Jud Süss, cujos temas centrais são a integridade do artista perante o poder político e o poder manipulativo da imagem. Cruzando o filme de Wiene com as duas adaptações ao cinema do Judeu Süss, história de ascensão e queda de um judeu lutando contra o destino a que a sua etnia o condenou, Blaufuks traça os destinos opostos de dois actores que contracenaram em Caligari. Conrad Veidt, que interpretava o sonâmbulo Cesare, recusou-se a colaborar com o regime, exilou-se e interpretou Süss na versão inglesa de 1934, um exercício de propaganda tolerante anti-nazi, acabando por morrer no exílio nos EUA; Werner Krauss, que interpretava o sinistro Caligari, representou cinco papéis diferentes no filme de 1940, puro exercício de propaganda anti-semita desenhado por Goebbels, foi colaborador do regime, depois reabilitado após a guerra, e morreu como um dos actores mais queridos do público alemão.

Blaufuks sobrepõe e intercala as presenças de Krauss e Veidt nas duas versões do Judeu Süss enquanto o Caligari original é exibido na íntegra, tornando explícita a leitura de manipulação política (Caligari como marionetista de uma populaça anestesiada) do filme de 1919, e usando-o como premonição de uma futura atitude individual (Krauss, o hipnotizador, viria a ser figura do regime; Veidt, o sonâmbulo, resistir-lhe-ia).

Paradoxo: Kracauer pode ter cristalizado a imagem de O Gabinete do Dr. Caligari como uma premonição do que aí vinha, mas Abílio Hernandez Cardoso deixou, na palestra da tarde de quinta-feira, a questão em aberto: como é possível um filme de 1919 antecipar uma catástrofe como a que o regime nazi geraria, o Holocausto, então algo de inimaginável? A resposta talvez esteja, como António Roma Torres deu a entender pouco depois, no modo como Caligari sugeria uma escolha entre a ordem e o caos, entre a anarquia das emoções e a frieza das leis. Entre ceder ao medo e resistir-lhe contra tudo.

Cem anos depois, O Gabinete do Dr. Caligari não será a obra-prima do expressionismo alemão. Mas continua a ser um caso (muito) sério.