Libra do Facebook levanta onda de preocupações entre reguladores e legisladores
Dos EUA à Ásia, passando pela Europa, a ideia de um sistema de pagamentos gerido pela rede social tem motivado receios e avisos. Empresa diz que quer sentar-se à mesa com os bancos centrais.
O plano do Facebook para lançar uma moeda digital tem levantado dúvidas por parte de bancos centrais, reguladores e legisladores em vários países, numa vaga de preocupações que reflecte as dificuldades em acompanhar o ritmo das grandes empresas tecnológicas.
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O plano do Facebook para lançar uma moeda digital tem levantado dúvidas por parte de bancos centrais, reguladores e legisladores em vários países, numa vaga de preocupações que reflecte as dificuldades em acompanhar o ritmo das grandes empresas tecnológicas.
A Reserva Federal (Fed), o banco central dos EUA, foi o mais recente a avisar que a nova moeda, chamada libra, traz riscos relacionados com actividades criminosas e com o próprio sistema financeiro. Nesta quarta-feira, o presidente da Fed, Jerome Powell, disse no Congresso americano que a libra implica “preocupações sérias” em questões de “lavagem de dinheiro, protecção do consumidor e estabilidade financeira”.
“Não consigo imaginar que possa avançar sem haver uma satisfação geral com a forma como a empresa aborda a lavagem de dinheiro”, afirmou Powell, citado pelo The New York Times.
O Facebook anunciou a libra a 18 de Junho, em parceria com outras 27 empresas e entidades, entre as quais a Visa, a Mastercard, o PayPal, a Uber e o Spotify, que formaram a Associação Libra. A associação tem a sede em Genebra, na Suíça, uma cidade conhecida pelos serviços financeiros. Não há qualquer banco envolvido.
O sistema de pagamentos deverá funcionar através de uma carteira digital, chamada Calibra, desenvolvida pelo Facebook, que poderá cobrar por algumas das transacções. No anúncio, a rede social afirmou que um dos objectivos é chegar aos milhões de pessoas, muitas das quais em África, que não têm acesso a uma conta bancária.
O Facebook afirmou que a libra deverá estar a funcionar algures no segundo semestre de 2020. Mas a empresa, que está a braços com uma crise de reputação relacionada com a privacidade e o tratamento de dados, também reconheceu que tem muito trabalho a fazer, incluindo no capítulo regulatório.
As afirmações do presidente da Fed aconteceram alguns dias depois de um grupo de congressistas ter enviado uma carta ao Facebook a pedir para a empresa suspender os planos de desenvolvimento da libra até que todas as questões do Congresso estejam esclarecidas, e também após alguns bancos centrais já terem expressado preocupações semelhantes.
Em resposta a algumas das críticas, o executivo do Facebook David Marcus, responsável pelo projecto da libra (e antigo presidente do PayPal), escreveu uma carta ao Congresso americano, na qual afirma que a empresa pretende acolher a intervenção dos reguladores. “Sabemos que as grandes ideias demoram tempo, que legisladores e outros estão a levantar questões importantes e que nós não podemos fazer isto sozinhos”, disse Marcus. “Queremos, e precisamos, de ter à mesa governos, bancos centrais, reguladores, organizações sem fins lucrativos e outros participantes, e de valorizar todos os comentários que recebemos.”
Já na semana passada, um membro do conselho executivo do Banco Central Europeu, o francês Benoit Coeure, tinha alertado para a necessidade de intervenção regulatória. “Está fora de questão deixá-los desenvolver as suas actividades de serviços financeiros num vácuo regulatório, porque é simplesmente muito perigoso”, afirmou Coeure, citado pela agência Bloomberg. “Temos de agir mais rapidamente do que temos sido capazes de fazer até agora.”
Por seu lado, o banco central chinês mostrou preocupação com o potencial impacto no sistema monetário e com um fortalecimento do poder do dólar. “Se uma divisa digital está fortemente ligada ao dólar americano, isso poderia criar um cenário em que as divisas soberanas coexistiram com divisas digitais assentes no dólar. Mas, no fundo, haveria um chefe, e seria o dólar americano e os Estados Unidos”, disse o director da instituição, Wang Xin, numa conferência universitária, de acordo com o jornal de língua inglesa South China Morning Post. Na China, onde muitos utilizadores começaram por acolher entusiasticamente a bitcoin, a transacção de criptomoedas é proibida.
A libra já pode ter tido efeitos nas criptomoedas.
Ao anúncio do mês passado seguiu-se uma subida acentuada do preço da bitcoin e outras moedas, um movimento que vários analistas de mercado atribuíram à notícia do interesse do Facebook e outros pesos-pesados na tecnologia. Mas estas moedas, que são essencialmente desreguladas, são conhecidas por terem uma grande volatilidade, por serem investimentos especulativos e por ser difícil explicar as muitas subidas e descidas.
A libra recorre à mesma tecnologia que a bitcoin e as restantes criptomoedas, mas terá um funcionamento muito diferente.
O acesso à base de dados que regista as transacções só pode ser feito por entidades autorizadas, ao passo que qualquer pessoa se pode juntar à base de dados descentralizada da bitcoin. O valor da libra estará também indexado a um cabaz de divisas e cada membro da associação contribuirá com dez milhões de dólares para constituir reservas que suportem a moeda digital – medidas que visam reduzir a volatilidade, que é tipicamente muito elevada nas criptomoedas. O sistema da libra vai também requerer menos capacidade computacional – e, portanto, menos energia – do que acontece com a bitcoin, que já foi várias vezes criticada pelo impacto ambiental.