O bom censo e as quotas étnico-raciais
Há bons argumentos para implementar as quotas, nomeadamente o aumento de oportunidades sobretudo se entendido como uma medida transitória, mas também bons argumentos para não o fazer, pela perpetuação do estigma.
Saber se deve existir uma pergunta sobre a pertença étnico-racial no censo de 2021 foi uma discussão surpreendentemente muito pouco animada, talvez por ter decorrido num plano abstracto, sem as vítimas e os vilões concretos que despertam as paixões. Seria a crónica de uma “intelectual consagrada” a fazer estalar o verniz. A crónica diz respeito não ao censo, antes à eventual existência de quotas étnico-raciais, mas as duas discussões estão relacionadas.
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Saber se deve existir uma pergunta sobre a pertença étnico-racial no censo de 2021 foi uma discussão surpreendentemente muito pouco animada, talvez por ter decorrido num plano abstracto, sem as vítimas e os vilões concretos que despertam as paixões. Seria a crónica de uma “intelectual consagrada” a fazer estalar o verniz. A crónica diz respeito não ao censo, antes à eventual existência de quotas étnico-raciais, mas as duas discussões estão relacionadas.
Infelizmente, o acréscimo de atenção só agravou o problema inicial, que foi a completa ausência de informação pertinente sobre o tema, como se Portugal fosse o primeiro país a confrontar-se com esta discussão e não houvesse já uma extensa literatura sobre os países em que os censos contemplam a informação étnico-racial e onde em algum momento passou a ser feita discriminação positiva com base na cor da pele.
Pelo chorrilho de ideias feitas sobre os negros e os ciganos, ignorância, argumentos desconexos e incivilidade, a crónica de Maria Fátima Bonifácio desviou-nos do essencial e deixou-nos atolados no pântano da liberdade de expressão e do politicamente (in)correcto. Sem surpresa, os guerrilheiros da direita, gramscianos invertidos que farejam as oportunidades de retoma da hegemonia cultural como um tubarão topa uma gota de sangue no oceano, apressaram-se a fazer da autora uma mártir e a parir o enquadramento maniqueísta do costume: os “marxistas culturais” (i.e., hipócritas cobardes que negam a realidade) vs. os conservadores (i.e., realistas corajosos que zelam pelos valores da civilização ocidental). É uma polarização que enche a discussão de pathos e a esvazia de logos.
Apesar de estar nos “limites do discurso de ódio”, para recuperar o eufemismo usado por Manuel Carvalho no seu comentário, a opinião da historiadora é útil por ter feito ouvir a voz de muitos, como se pode ler na caixa de comentários ao artigo, dando algum crédito à tese de que em Portugal o populismo só não cresceu à custa do discurso anti-imigração porque não são assim tantos os estrangeiros que aqui se instalam, mantendo a nossa sociedade uma grande homogeneidade étnica e cultural.
Foi também útil por nos permitir apreciar a qualidade do pensamento e mundividência de quem assim critica os negros e os ciganos, e — já como pura fruição — o notável esforço de hermenêutica branqueadora a que se dedicou Rui Ramos. O assunto já fede, mas façamos um resumo: a historiadora revelou-se ignorante ao escrever que a mutilação genital feminina é “imperativa nas tribos muçulmanas” (a mutilação genital feminina precede o islamismo e não é praticada em muitos países muçulmanos).
Evidenciou também uma lógica absurda com a enigmática genealogia do “nem uns nem outros [africanos e ciganos] descendem dos Direitos Universais do Homem”, não se percebendo se os direitos deixaram entretanto de ser universais ou se há direitos de autor a pagar, e o non sequitur “os africanos são abertamente racistas”, como se ficasse legitimado o racismo dos brancos, quando a única conclusão que se poderia retirar – se se desse por válida a observação – é que também na propensão para o racismo alguns brancos e negros não se distinguem e transcender as nossas tendências naturais é um desafio comum a todos os homens. Enfim, frise-se ainda o insondável mistério que são as defesas inflamadas da “entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade” sem um resquício de bondade cristã.
Como discutir serenamente o delicado e complexo tema das quotas étnico-raciais depois da diatribe da Doutora Bonifácio? Evidentemente, já ninguém terá agora vontade de retomar a discussão que importava. Mas tentemos fazê-lo. Ainda adiantará lembrar uma pertinente reflexão de Marta Araújo sobre a importância da recolha de dados étnico-raciais e a recusa do Estado português em o fazer. Valerá ainda a pena lembrar que, numa sociedade aberta, é quem se recusa a colher informação que tem o ónus de explicar essa recusa. Ou que podemos ser a favor da inclusão no censo da questão entretanto chumbada pelo INE, mas sem defender necessariamente a existências de quotas.
Valerá ainda a pena lembrar que a discussão sobre as quotas rapidamente redunda num impasse quando discutida sem recorrer a informação empírica, mesmo quando temos o mesmo objectivo (a diminuição da discriminação étnico-racial). Isto sucede porque há bons argumentos para implementar as quotas, nomeadamente o aumento de oportunidades sobretudo se entendido como uma medida transitória, mas também bons argumentos para não o fazer, pela perpetuação do estigma, difícil conciliação com a meritocracia e injustiça inerente, pois uma família negra ou cigana de classe média alta teria um benefício às custas de alguma família remediada.
Valerá ainda a pena discutir outras formas de essencialmente produzir o mesmo resultado sem fragmentar ainda mais a sociedade, como quotas com base no nível socioeconómico ou apoios sociais a crianças e adolescentes mais vigorosos, eficazes, imaginativos e adaptados às comunidades que importa ajudar. Por fim, valerá ainda a pena pedir a académicos, “consagrados” ou não, vindos dos departamentos universitários “dominados pela esquerda” e de algum think tank “da direita”, que debatam os dados recolhidos ao longo de várias décadas sobre os efeitos da discriminação positiva em vários países, nomeadamente os EUA.
Não tenho a ilusão de pensar que uma resposta empírica chegará para gerar um consenso. Sei que a ideologia e complexidade das sociedades mantêm viva a discussão sobre as virtudes e deméritos do salário mínimo, apesar das montanhas de dados de que dispomos e o caso das quotas étnico-raciais tem as características desses eternos debates. Mas se a crónica da Doutora Bonifácio só é um embaraço para a autora, insistir na discussão viciada sobre a liberdade de expressão e na guerrilha cultural até a energia que se libertou se dissipar seria uma oportunidade perdida e uma vergonha para todos nós.