Podemos? Claro que podemos!
Deixam de ser verdadeiros negros para serem considerados evoluídos. A cor torna-se equívoco, de preto só a aparência, e essa dilui-se rapidamente. Talvez seja o pior tipo de racismo.
À maneira de Fanon: sou mulher, sou negra. Não sou vítima nem brinquedo. Não sou um objeto de proteção ou de defesa condescendente. Não sou uma potencialidade de algo, sou plenamente o que sou. Reconheço-me um só direito: o de exigir do outro um comportamento humano. Um só dever. O de não renegar a minha liberdade nas minhas escolhas.
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À maneira de Fanon: sou mulher, sou negra. Não sou vítima nem brinquedo. Não sou um objeto de proteção ou de defesa condescendente. Não sou uma potencialidade de algo, sou plenamente o que sou. Reconheço-me um só direito: o de exigir do outro um comportamento humano. Um só dever. O de não renegar a minha liberdade nas minhas escolhas.
O racismo existe em Portugal. A sua instrumentalização, independentemente dos motivos subjacentes, é também uma das suas faces. Num momento em que se lança um debate, eventualmente interessante, sobre a discriminação positiva para as minorias étnico-raciais, nada como um artigo de opinião naturalizando a discriminação.
Não estranhei a opinião. Não é nada de novo. Faz parte do meu quotidiano. Do quotidiano de muitos africanos, ciganos; enfim, de muitos seres humanos.
Um parêntesis para algumas clarificações. As opiniões individuais práticas e racistas não me incomodam. Preta! Não, não considero ofensivo. Não, não peço desculpa por não considerar ofensivo. Sou absolutamente indiferente a essa alienação cromática de considerar branco como positivo e negro como negativo. Talvez pelo conhecimento de um dos mais belos textos de Agostinho Neto que cito sem pretensão de rigor: se ser branco é chicotear negros, se ser negro é ser chicoteado, então eu prefiro ser negro.
Não consigo considerar ofensivas as considerações a propósito dos “africanos”, sou absolutamente alheia à alienação geográfica de quem porventura ignora que também foi por decreto que muitos dos africanos que residem em Portugal deixaram de ter a nacionalidade portuguesa. Normalmente e felizmente também ignoram o que é o continente africano, a sua variedade, as suas culturas, os seus contributos para a humanidade. Também ignoram que muitos africanos são eurodescendentes, alguns godos, outros germanos e ainda outros simplesmente desterrado-descendentes (não, não ri enquanto escrevi).
Dou de barato que muitos dos pretos, perdão, africanos portugueses, são segundas e terceiras gerações e se tiverem ascendentes das antigas colónias, perdão, províncias ultramarinas, carregam em si mais de 500 anos de cultura portuguesa.
Fecho o parêntesis evitando repetir o que décadas de lusotropicalismo deixaram como marca irrefutável: o português (nós, porque também o sou) foi o colonizador bonzinho, destemido, aberto a novas culturas e gentes que catalogou numa artística palete de cores, e que somos todos amigos, amantes do fado e do Benfica (e é verdade... tenho muitos amigos brancos, perdão, europeus, gosto de fado de Coimbra e sou benfiquista).
Sem querer ser maniqueísta mas aproveitando despudoradamente as generalizações feitas no artigo, a opinião da articulista reflete a representação social e cultural do negro em Portugal, um (in)consciente coletivo solidário com os mitos e os arquétipos que associam o negro à obscuridade — negros são selvagens, estúpidos, analfabetos, inferiores.
Mas neste (in)consciente coletivo existe, também, algo que é familiar a todos os negros em Portugal que, por um motivo ou outro, não cabem nos estereótipos citados no artigo. Deixam de ser verdadeiros negros para serem considerados evoluídos. A cor torna-se equívoco, de preto só a aparência, e essa dilui-se rapidamente. Talvez seja o pior tipo de racismo; se o negro bem-sucedido perde a cor negra, temos uma sociedade que reafirma a sua superioridade cromática eliminando a cor do outro, reafirmação que visa e torna possível a manutenção do preconceito.
Imaginemos por um segundo que a articulista deu aulas de História... Não preciso de imaginar, basta-me voltar ao 11.º ano e lembrar um professor de Filosofia que abriu a primeira aula afirmando-se racista. Vá-se lá saber porquê, não gostou da resposta, “Eu também. Não gosto de estúpidos”, e fui obrigada a anular a matrícula... Eu e vários colegas europeus!
Mais violenta do que a bastonada da polícia é a paulada do professor que se admira de ter um negro como melhor aluno da turma, transmitindo a ideia de anormalidade ou milagre intelectual, ou, do colega que aceita perfeitamente a tareia no basquete, mas não no xadrez.
Não desperdicemos as raras ocasiões em que o racismo se torna visível com altercações estéreis ou incidentais. Tipo: pululam portugueses europeus com quem não partilho os mais elementares valores morais e não têm sequer ideia do que é civismo, ou, os portugueses europeus não descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789, aliás, não fossem os europeus anglófonos imporem pela força o fim do tráfico, ainda continuariam a traficar pessoas. Forte, não é? Pois é, mas é incidental e estéril.
O problema não é conhecer a realidade, mas transformá-la. Por melhor que seja, nenhuma política resiste aos preconceitos de quem a executa ou dos seus beneficiários. O diferencial de tratamento por motivos étnicos, de género, de opção sexual e outros continuará presente ou latente se não trilharmos caminhos que são longos, de preferência resistindo às tentações de condescendência, de mitigação ou exacerbação, consoante os interesses.
Fugindo ao politicamente correto da reafirmação dos direitos humanos para um grupo vulnerável, o desafio que temos em mãos é o da eliminação do preconceito. Preconceito que tolhe e envenena.
Um trabalho titânico aguarda todos os que queiram fazer passar os seus preconceitos pelo crivo da objetividade. Negros ou brancos. Uma responsabilidade que é mútua. Nunca na perspetiva do branco que vai dizendo vamos incluir os pretos, vamos elevá-los à condição humana ou do negro que vai dizendo os brancos são todos racistas e inumanos, mas num processo repartido de respeito e reconhecimento do outro. Mas podemos? Claro que podemos.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico