O caso Matilde. Dois milhões de euros, 200 mil passos dados, dois medicamentos para dois anos
Não questiono o medicamento celebrado - parece muito promissor - mas a pressa em vendê-lo antes de suficiente comprovação, antes de terminarem os estudos de eficácia ainda em curso. Questiono a chantagem emocional.
Dos jornais: “Esperança de cura para a pequena Matilde está nos EUA”… “Os próximos dias serão decisivos na vida de Matilde Sande”. “Quem é que não ficou sensibilizado com o apelo dos pais de Matilde”.” (200) mil passos dados com destino à meta da cura”. “Em menos de uma semana já dispõe de dois milhões”. “A cura desta doença … um medicamento que custa milhões… “mas tratamento ainda não chegou”. “SNS pode comparticipar totalidade do medicamento”. De acordo com o que lemos e ouvimos parece estar em causa a cura da Matilde. Cura?
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Dos jornais: “Esperança de cura para a pequena Matilde está nos EUA”… “Os próximos dias serão decisivos na vida de Matilde Sande”. “Quem é que não ficou sensibilizado com o apelo dos pais de Matilde”.” (200) mil passos dados com destino à meta da cura”. “Em menos de uma semana já dispõe de dois milhões”. “A cura desta doença … um medicamento que custa milhões… “mas tratamento ainda não chegou”. “SNS pode comparticipar totalidade do medicamento”. De acordo com o que lemos e ouvimos parece estar em causa a cura da Matilde. Cura?
Não se pode falar em cura com o já célebre medicamento AVXS-101 (Zolgensma), actualmente. Apenas existem estudos preliminares e apenas terminará no próximo ano o único estudo de fase 4 de verificação de eficácia, que ainda decorre. Neste parágrafo tentarei simplificar dados demasiado técnicos. Primeiro, o medicamento AVXS-101 (Zolgensma) de que tanto se fala surgiu há há meses. Este medicamento promoveu um estudo de apresentação, de comparação da sua eficácia com o medicamento anteriormente já existente, nusinersen; o estudo concluía o seguinte, “Esta comparação não directa sugere que o AVXS-101 pode ter vantagem em eficácia em relação ao nusinersen”. O estudo referia que beneficiavam um em cada 6 doentes tratados com AVXS-101, em relação aos tratados com nusinersen, em termos de mortalidade: uma melhoria de 20%. Segundo, o medicamento nusinersen também já tinha sido submetido em 2016 a um estudo para apresentação, que tinha esta conclusão, “os doentes que receberam nusinersen mostraram maior propensão a sobreviver e ter melhorias na função motora em relação ao grupo controle”; beneficiavam um em cada 3 ou 4 doentes tratados com nusinersen, em relação aos sem tratamento, em termos de mortalidade. Terceiro, sem medicações específicas. Ser apenas relativo o benefício significa que não morriam todos os bebés com Atrofia Muscular Espinal (tipo1) não tratados; mas morriam mais de 13% até os 2 anos, segundo as estatísticas mundiais, que apresentam taxas muito variadas. Note-se a prudência das conclusões dos dois promotores dos dois medicamentos: O primeiro referia apenas propensão a melhores resultados em relação a nenhuma terapêutica, e o segundo medicamento limitou-se a admitir uma possibilidade de melhoria adicional. Nenhum estudo fala, nem sugere, nem especula, sobre cura.
Em 19 de Junho passado, surgiu um texto no Facebook , “A minha história MATILDE, UMA BEBÉ ESPECIAL”. Refere o seguinte: “Apesar de começar o tratamento dentro de algumas semanas, os papás estão determinados em “salvar” a minha vida. Existe um medicamento novo Zolgensma (…) que poderá ser a cura para esta doença”. Note-se que a criança já tinha sido referenciada para o tratamento com o medicamento existente em Portugal, cuja eficácia possível é razoável, mas os pais apelaram à solidariedade dos cidadãos para adquirir um medicamento novo, apenas 20% mais benéfico, mas que o texto do Facebook alega poder ser a cura para esta doença. Assim, 20% de melhoria nos resultados transformou-se em poder ser a cura, que se transformou em cura. Mas como cura se o próprio promotor do medicamento nunca referiu oficialmente esta possibilidade e apenas “garante” determinados efeitos benéficos a dois anos ou menos? Para além deste tempo nada se sabe.
Mas a campanha das redes sociais angariou dois milhões em menos de uma semana. Começa assim o texto do Facebook, “Olá, Eu sou a Matilde tenho dois meses e sou uma bebé especial, tenho um mano o Rodrigo que tem 18 meses e uma mana crescida a Thaís que já tem 11 anos!”. Segue-se um longo texto, onde a personagem ficcionada Matilde relata o seu calvário, referindo uma dezena de vezes “a mamã e o papá”, “os papás”. O texto termina anunciando que, cito, “Agora toda a ajuda é bem-vinda. Os papás vão abrir uma conta solidária que irão partilhar em breve (… para) o medicamento mais caro do mundo …. Esta página é para partilhar a minha história e angariar fundos para ajudar, e quem sabe “salvar” a minha vida...” fim de citação. Um texto comovedor, com recurso repetido às expressões “a mamã e o papá”, “os papás”, mas objectivo e directo. Este medicamento 20% melhor do que o já existente em Portugal, é quase 2000 vezes mais caro. Note-se, angariar fundos para ajudar (a minha vida), e quem sabe, “salvar” a minha vida. Eu tenho profunda convicção que o sofrimento dos pais é insuportável, e é por isto que penso que este texto terá tido ajuda solidária duma terceira pessoa: parece demasiado reflectido para ser escrito apenas, sem ajuda, por uma pessoa inevitavelmente cegada pela sua dor.
Imagine-se a segunda Matilde portuguesa a lançar idêntica campanha, “Olá, Eu sou a Matilde 2”; conseguiria metade do apoio? E a terceira Matilde, metade de metade do apoio? Penso que a sexta Matilde conseguiria apenas esta resposta, “já demos demais, agora cabe ao Estado custear tudo o que se seguir”. Mas não era esse o objectivo, mesmo? De quem? Se “o Estado somos todos nós”, não equivale esta resposta a sermos todos nós a custear tudo? “Já contribuímos demais, não podemos mais, agora cabe-nos a nós custear tudo o mais”, é assim? Apenas cegados pela emoção? Sem estudos seguros? Para benefício de quem?
Inédita esta nossa mobilização solidária? Inédita apenas a nível mundial, não em Portugal. Em 2002 também nos orgulhávamos pela independência de Timor, que “mobilizou a sociedade portuguesa num movimento sem precedentes”; foi a nossa “causa nacional bem-sucedida”. Logo no início, sensibilizados pela morte de 200 jovens timorenses, quase tantos jovens embarcaram no Lusitânia Expresso para ajudar a salvar Timor. Afinal ajudámos sobretudo a Austrália, soubemo-lo agora, 20 anos depois, pela boca de Xanana Gusmão: “Sentimo-nos traídos por um país, supostamente amigo”.
Em 2002 o presidente da UEFA ria-se na nossa cara: “É admirável o que se passa. Nunca nenhum país do mundo construiu dez estádios num tão curto espaço de tempo para um campeonato apenas”. Agora são uma fonte de prejuízos, ponderando-se até a demolição de alguns. Mas que interessam estas bagatelas, se o Euro2004 português foi considerado o melhor de sempre, pela mesma UEFA que antes ironizara? Os últimos a rir não fomos nós?
Não questiono o medicamento celebrado - parece muito promissor - mas a pressa em vendê-lo antes de suficiente comprovação, antes de terminarem os estudos de eficácia ainda em curso. Questiono a chantagem emocional.