A propósito do texto de Maria de Fátima Bonifácio
Equilibrar a recusa da censura com a abertura das nossas páginas a opiniões que não partilhamos é uma tarefa sempre difícil
“Indigno”. “Vergonhoso”. “Insultuoso”. Durante este sábado, muitos leitores fizeram questão de protestar contra a publicação do artigo da historiadora Maria de Fátima Bonifácio com o título “Podemos? Não, não podemos”. Vários jornalistas do PÚBLICO e os membros eleitos do Conselho de Redacção juntaram-se a esse protesto, alegando que em causa está uma grave ofensa aos valores matriciais do jornal. O PÚBLICO orgulha-se da sua tradição de estar na linha da frente do combate ao racismo ou a qualquer tipo de discriminação baseada na cor da pele, na sexualidade ou no género. Torna-se por isso imperativo explicar o processo e as razões que levaram à publicação. E dar conta das consequências que esta opção tem de merecer para o futuro.
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“Indigno”. “Vergonhoso”. “Insultuoso”. Durante este sábado, muitos leitores fizeram questão de protestar contra a publicação do artigo da historiadora Maria de Fátima Bonifácio com o título “Podemos? Não, não podemos”. Vários jornalistas do PÚBLICO e os membros eleitos do Conselho de Redacção juntaram-se a esse protesto, alegando que em causa está uma grave ofensa aos valores matriciais do jornal. O PÚBLICO orgulha-se da sua tradição de estar na linha da frente do combate ao racismo ou a qualquer tipo de discriminação baseada na cor da pele, na sexualidade ou no género. Torna-se por isso imperativo explicar o processo e as razões que levaram à publicação. E dar conta das consequências que esta opção tem de merecer para o futuro.
O texto em causa está, no mínimo, nos limites do discurso de ódio, faz generalizações que põem em causa o combate à discriminação racial, usa linguagem insultuosa para diferentes minorias e coloca ênfase numa radical oposição civilizacional entre os “nós” europeus e os “outros”, africanos ou “nómadas”. Estão, por isso em causa, ideias, apologias e valores que o PÚBLICO contraria todos os dias, seja pelo trabalho dos seus jornalistas, seja pela abertura sem reservas que concede aos cidadãos de minorias visadas no artigo.
Ainda assim, é consensual a ideia de que o PÚBLICO é um espaço plural de opinião onde com muita frequência se publicam textos que estão longe dos valores que defendemos. No caso em concreto estava em causa um texto de uma intelectual consagrada, cujas teses rejeitamos mas julgámos caberem nos limites da liberdade de expressão. Na nossa interpretação, a proximidade a teses racistas e xenófobas era evidente, mesmo que não se fizesse a defesa da segregação. O recurso ao discurso de ódio, de uns contra outros, estava na fronteira do admissível, mesmo sem que houvesse incitamento à sua prática.
O uso destes argumentos para criticar uma intenção legislativa sobre quotas raciais no Parlamento ou no Ensino Superior anunciada por um deputado socialista induziu a apreciação das suas teses sobre ciganos ou africanos como utensílios de suporte a um legítimo protesto político. Não construíam o ângulo essencial do texto, apesar da proliferação de exemplos. Mesmo que essas teses hostilizassem a nossa linha editorial, considerámos que esses termos, ideias e valores eram aceitáveis no quadro da liberdade de expressão que assiste a uma colunista que é colaboradora regular do jornal e intelectual prestigiada na sua área científica.
Subestimámos assim o teor e tom dos argumentos em favor da crítica que a autora faz à possível adopção de quotas raciais. Considerámos que o direito a ofender, aceitável na interpretação genérica que fazemos da liberdade de expressão, justificava a publicação, mesmo sabendo que seria polémica e susceptível de levar muitos dos nossos leitores a questionar a nossa linha editorial ou o grau de tolerância que concedemos a ideias e valores que rejeitamos na nossa prática quotidiana. Reconhecemos que as expressões discriminatórias usadas remeteram a questão das quotas para a irrelevância. Ou seja, cometemos um erro de análise e de avaliação.
Defendemos uma liberdade ampla de expressão dos nossos colunistas e de todos os que recorrem ao PÚBLICO para manifestar as suas ideias, visões, propostas ou críticas. Essa é uma marca de água do jornal e assim continuará a ser. Mas as reacções e episódios associados a esta polémica obrigam-nos a reforçar os critérios de exigência e selectividade. Principalmente quando em causa estiverem questões sensíveis como as que se associam à discriminação. Um jornal como o PÚBLICO é um espaço de convivência baseado em valores. A Direcção Editorial tem o dever de proteger esse espaço, evitando que esses valores sejam postos em causa. Lamentavelmente, não foi isso que aconteceu.
Se há matéria na qual o PÚBLICO não pode deixar mensagens duvidosas aos seus leitores (e a todos os que o fazem diariamente) é sobre o lugar onde se encontra no combate ao racismo e à xenofobia. Aqui deixamos esta explicação para sublinhar sem margem para dúvidas esse nosso compromisso.