Tanya Tagaq na Estalagem da Madeira que faz acontecer cultura
Na vila da Ponta do Sol existe uma unidade hoteleira que comunica com cultura. É lá que este sábado se vai fazer ouvir a voz sobrenatural da canadiana Tanya Tagaq, na abertura da série de Concertos L.
Por norma a cantora canadiana Tanya Tagaq actua em salas de prestígio como o Carnegie Hall de Nova Iorque ou em festivais de nomeada pela Europa fora. Autora de música tão inclassificável quanto bela, capaz de agradar a Björk, que com ela colaborou, ou à bíblia das músicas de vanguarda, a revista The Wire, que lhe deu capa em Maio, destaca-se por recorrer ao canto tradicional dos esquimós para, com uma técnica perfeita, o fundir com elementos que vão do rock à electrónica.
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Por norma a cantora canadiana Tanya Tagaq actua em salas de prestígio como o Carnegie Hall de Nova Iorque ou em festivais de nomeada pela Europa fora. Autora de música tão inclassificável quanto bela, capaz de agradar a Björk, que com ela colaborou, ou à bíblia das músicas de vanguarda, a revista The Wire, que lhe deu capa em Maio, destaca-se por recorrer ao canto tradicional dos esquimós para, com uma técnica perfeita, o fundir com elementos que vão do rock à electrónica.
Este sábado, porém, vai estar na Estalagem da Ponta do Sol, na vila do mesmo nome, a meia hora de carro do Funchal, para revelar o seu quinto álbum de originais, lançado em Março. Cabe-lhe o papel de abrir mais uma série de Concertos L, um evento estival com curadoria de Nuno Barcelos que até ao fim de Setembro vai levar semanalmente àquela vila outras vozes singulares, como a do americano Lonnie Holley, a da espanhola Silvia Pérez-Cruz ou a do português Salvador Sobral. O mesmo acontecerá com o dinamarquês Elias Bender (voz e líder do importante grupo rock Iceage), que apresentará um concerto inédito resultante de uma residência artística que ali fará com o baterista luso Gabriel Ferrandini. A brasileira Luedji Luna, os Mão Morta e The Legendary Tigerman são outros nomes que ali tocarão.
A iniciativa tem conduzido àquela localidade, ao longo dos últimos anos, nomes como Weyes Blood, Thurston Moore, Sevdaliza, Bianca Casady (CocoRosie), Juana Molina ou Anna Meredith. Não será caso único, uma unidade hoteleira ser em paralelo um dos núcleos culturais mais conhecidos e mais activos de determinado território, mas não deixa de ser singular.
Para além dos Concertos L, a estalagem é conhecida pela co-organização do festival Madeira Dig, dedicado às músicas exploratórias electrónicas, pelo evento de cinema experimental Madeira Micro International Film, ou pela realização de residências artísticas na vila, pelas quais já passaram nomes como Dirty Beaches ou Nástio Mosquito, mas também núcleos de música clássica. À frente dos destinos da estalagem está André Diogo, que acredita na ligação entre cultura e turismo, defendendo que são necessárias outras motivações, para além do sol e do mar, para trazer novos públicos à Madeira.
A propriedade onde fica situada a estalagem pertencia a uma “empresa que detinha o monopólio do açúcar no principio do século XX nesta zona”, revela ao PÚBLICO, contando a história do edifício situado numa encosta, com vista para o casario e o oceano. “Quando soube que estava à venda vim cá com um arquitecto amigo, Tiago Oliveira, e de imediato imaginámos um hotel, algo descontraído, que pudesse ir sendo construído de raiz e com paixão.”
O afastamento do Funchal, em vez de ser problema, foi visto como positivo. “A hotelaria do Funchal era indistinta e gasta, sem o charme que já teve. A Ponta do Sol é mais ilha, autêntica, rural e com bom clima. E foi assim que o hotel foi sendo construído com torres e ponte, de forma a respeitar a orografia, a paisagem e os terraços.” Desde o início, na alvorada dos anos 2000, que havia essa ideia de ocupar o espaço com música, design e arte, mas a comunicação não era fácil. Depois, a viragem.
“Fui à feira de turismo de Berlim e encontro o Claus Sendinger, responsável pela cadeia independente Design Hotels, a quem mostrei o projecto. Eles vieram cá, gostaram, e entrámos para o grupo em 2002, numa altura em que haveria para aí 30 no mundo. Em Portugal havia apenas a Pousada de Santa Maria de Bouro, do [arquitecto Eduardo] Souto de Moura. Isso ajudou. Recordo-me de ter saído um pequeno artigo numa revista de um jornal alemão, feito por um fotógrafo que aí havia estado, e começamos a receber fax atrás de fax no fim-de-semana da publicação.”
Não foi fácil. “Começámos com três empregados e estagiários. Hoje somos 53”, lembra André Diogo. “Ao mesmo tempo fomos percebendo que havia muita gente, um público mais urbano, que vinha à Madeira e ao qual o Funchal não interessava.” Essa percepção intensificou-se em 2004, com a abertura do centro de artes Casa das Mudas, na vila próxima da Calheta – “Isso ajudou a estalagem, porque aquilo abriu com uma excelente exposição, era um belo projecto arquitectónico e fiz logo um acordo com eles com preços quase irrisórios”, conta o responsável –, e poucos anos mais tarde com o festival Madeira Dig, que havia começado no Funchal, e que passaria a dividir-se, sempre em Dezembro, entre a Casa das Mudas e a estalagem.
Nos últimos anos, praticamente todos os nomes mais reconhecíveis das electrónicas mais experimentais passaram por lá (Fennesz, Oval, Cluster, William Basinski, Oneohtrix Point Never, Tim Hecker, Alva Noto, Ben Frost), atraindo uma assistência internacional. “Às vezes perguntam-me por que abraçámos um festival com música tão distintiva. Gosto muito de jazz, mas já há muita coisa feita nesse campo. Se queríamos diferenciar-nos, tinha de ser com algo de forte potencial. E foi isso que aconteceu.”
Ao longo do ano, para além dos concertos e festivais, existem outros motivos de atracção na estalagem – “No Inverno temos mais de 30 retiros de ioga”, revela – sendo André Diogo da opinião de que a “Madeira tem um potencial que não é devidamente aproveitado”. A sua experiência diz-lhe que a Ponta do Sol, por exemplo, poderia transformar-se num centro de residências artísticas. Isso tem acontecido, mas casuisticamente, sem apoios institucionais. “É incrível o número de músicos que vem cá e que refere o facto de isto estar a três horas de Berlim ou Londres, de ter bom clima todo o ano e algumas infra-estruturas. Há aqui um potencial enorme, mas tem de ser activado. Não podemos fazer tudo.”
Ainda assim, acontecem muitas coisas por iniciativa da estalagem. “Temos um acordo com a Universidade Goldsmiths, de Londres: vêm para cá com gente de todo o mundo durante 20 dias e depois apresentam os trabalhos desenvolvidos aqui na estalagem ou nos auditórios e capelas da vila.”
Em toda a actividade desenvolvida, diz, existe um critério importante. “Não quero perder dinheiro – com os Concertos L, por exemplo, não se perde, nem se ganha, embora haja proveitos em comunicação –, mas também não se pode pensar apenas em lucro. Quero sentir que participo na vida da comunidade. Tenho orgulho na Ponta do sol e parece-me que as pessoas têm orgulho na estalagem. Há uma boa relação.”
Este sábado, lá estarão nos jardins da estalagem habitantes da vila, gente vinda do Funchal e estrangeiros de visita à ilha, apanhados desprevenidos por terem em cartaz Tanya Tagaq. É até bem provável que a canadiana, no final, diga que deseja voltar. “Isso acontece imenso”, admite André Diogo. “Muitos artistas, na hora de se despedirem, fazem de imediato reservas para voltarem. Foi o que aconteceu por exemplo com Sevdaliza.”