O Verão será eterno
O Luís estava longe, chamei as minhas primas e a minha mãe e deixei-me chorar. Foi a primeira vez que chorei por um cão. Não sabia que se podia chorar por um cão.
Há dois dias que nunca vou esquecer. Quer dizer, há muitos outros, claro, mas o que interessa para o que aqui se vai contar é que há dois dias que nunca vou esquecer: quando vi o Verão pela primeira vez e quando o vi pela última vez. A primeira era Setembro, um calor dos diabos em Lisboa, eu pouco à vontade com cães e ele a receber-me à porta como sempre fazia: aos saltos, a cauda a abanar, as patas nas minhas pernas nada habituadas a estes mimos. O Verão tinha sete anos e era um cão feliz que vivia na cidade. A última vez que o vi era Julho, 19, 2018. Era um cão velho e doente e olhou-me nos olhos como nunca o tinha feito. Naquele momento suspeitei que talvez fosse o nosso último olhar, um olhar cúmplice, de gratidão mútua, mas não tive a certeza. Pouco depois, encontrei-o morto. O Verão tinha 16 anos e acabara de morrer, já não na cidade grande, numa cidade pequena, da província, acho que é assim que se diz.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Há dois dias que nunca vou esquecer. Quer dizer, há muitos outros, claro, mas o que interessa para o que aqui se vai contar é que há dois dias que nunca vou esquecer: quando vi o Verão pela primeira vez e quando o vi pela última vez. A primeira era Setembro, um calor dos diabos em Lisboa, eu pouco à vontade com cães e ele a receber-me à porta como sempre fazia: aos saltos, a cauda a abanar, as patas nas minhas pernas nada habituadas a estes mimos. O Verão tinha sete anos e era um cão feliz que vivia na cidade. A última vez que o vi era Julho, 19, 2018. Era um cão velho e doente e olhou-me nos olhos como nunca o tinha feito. Naquele momento suspeitei que talvez fosse o nosso último olhar, um olhar cúmplice, de gratidão mútua, mas não tive a certeza. Pouco depois, encontrei-o morto. O Verão tinha 16 anos e acabara de morrer, já não na cidade grande, numa cidade pequena, da província, acho que é assim que se diz.
Não vou esquecer aquela tarde. Estava ao telefone com o Luís e desatei a chorar, a pedir-lhe que me ajudasse. Ele estava em Lisboa, eu em Santa Maria da Feira, a nossa morada em comum alguns dias da semana, a morada permanente do Verão desde 2013. Eu estava a ver o Verão pela janela da sala, deitado no terraço, de olhos abertos, e não precisei de ir lá para saber que estava morto. Aliás, eu não consegui ir lá. A única coisa que fiz foi abrir a porta do terraço para deixar entrar a Indie, a cadela de sete anos que também temos connosco. Eu só conseguia chorar. O Luís estava longe, chamei as minhas primas e a minha mãe e deixei-me chorar. Foi a primeira vez que chorei por um cão. Não sabia que se podia chorar por um cão.
Continuava a chorar quando chegou a funcionária da clínica veterinária que chamei para levar o Verão. E foi a chorar que a ouvi pô-lo numa caixa e levá-lo para sempre. O Verão estava a deixar a nossa casa para sempre. Tecnicamente, aquele era um dia de Verão, que por acaso é a minha estação favorita, mas o Verão escolheu partir num dia que não era de Verão: estava um vento agreste, próprio dos dias de fim de Inverno a cheirar a Primavera. Acho que ele fez de propósito, partir num dia de Verão que o era apenas pelo calendário, para não me obrigar a escolher outra estação do ano preferida.
Ele foi-se embora naquele dia, mas para nós o Verão será eterno. Quando consegui secar as lágrimas, entrei no carro com a Maria João e fui a uma loja imprimir a minha fotografia favorita com ele. Foi o meu amigo Nelson Garrido que a fez, em Setembro de 2017. O Verão já estava doente, era um cão de 15 anos com doença cardíaca, e eu quis tê-lo para sempre em imagens bonitas enquanto ainda estava em razoável forma. As fotografias do Nelson, do Verão e também da Indie, ficaram lindas, mas há uma de que gosto especialmente: estou a abraçá-lo, macacos me mordam se alguma vez pensei fazer isto a um cão – e alguns de vocês sabem que estou a dizer a verdade.
O Luís chegou nessa noite. Fui buscá-lo ao autocarro. Levei a Indie e um embrulho bonito com a fotografia numa moldura. Quando ele chegou, abraçámo-nos, mas só chorámos juntos em casa, no exacto sítio onde eu encontrara o Verão morto. Já passou quase um ano, mas continuo a saber exactamente em que lajes do terraço o coração dele se cansou de vez.
Já fiz lutos vários na minha vida, o mais doloroso pelo meu pai. Pelos meus avós, pelos meus tios. Agora faço o luto pelo Verão. E o meu luto pelo Verão faz-se sobretudo através da Indie.
A minha vida mudou com o Verão – eu mudei com o Verão, o cão rafeiro que tinha o melhor nome de sempre. E se ao longo dos cinco anos em que vivemos juntos a minha afeição foi aumentando gradualmente, só percebi realmente o quanto gostava dele nos seus últimos meses de vida (claro). Agora que penso nisso, entendo que amei o Verão como naquele tempo sabia amar um cão. E percebi, no dia em que ele morreu, que nada iria ser como dantes.
Hoje sei amar a Indie de outra forma. Enquanto escrevo estas linhas, já voltei a chorar pelo Verão, mas o mais importante é que as escrevo com a Indie deitada praticamente aos meus pés. Chove lá fora e estamos aqui as duas, a aquecer-nos uma à outra. Acho que ambas sabemos que o Verão é o responsável por isto.
Quem nos últimos cinco anos me ouviu dizer as maiores barbaridades sobre a minha condição de quase “mãe solteira” de dois cães, pode agora fazer um sorrisinho cínico à vontade, eu sei que mereço: um cão muda-nos de facto a vida. Eu estou cá para comprovar o cliché.