Kamala Harris foi ao debate do Partido Democrata com os fantasmas de Joe Biden
No segundo debate dos candidatos do Partido Democrata às eleições primárias, a senadora da Califórnia fez valer a sua experiência como procuradora-geral e acusou o antigo vice-presidente de colaborar com racistas.
A longa corrida para a escolha do principal adversário de Donald Trump nas próximas eleições para a Casa Branca, em representação do Partido Democrata, ganhou esta semana pelo menos mais duas figuras de peso. E uma delas, a senadora Kamala Harris, da Califórnia, conseguiu mesmo desequilibrar o favorito nas sondagens com o momento mais tenso do segundo debate televisivo entre os candidatos, que decorreu esta noite no estado da Florida. Perante milhões de telespectadores, Harris acusou Joe Biden de colaborar com senadores racistas, na década de 1970, para impedir crianças como ela de chegarem mais longe nos estudos.
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A longa corrida para a escolha do principal adversário de Donald Trump nas próximas eleições para a Casa Branca, em representação do Partido Democrata, ganhou esta semana pelo menos mais duas figuras de peso. E uma delas, a senadora Kamala Harris, da Califórnia, conseguiu mesmo desequilibrar o favorito nas sondagens com o momento mais tenso do segundo debate televisivo entre os candidatos, que decorreu esta noite no estado da Florida. Perante milhões de telespectadores, Harris acusou Joe Biden de colaborar com senadores racistas, na década de 1970, para impedir crianças como ela de chegarem mais longe nos estudos.
Numa campanha para as eleições primárias dominada pela vontade de expulsar Trump da Casa Branca em Novembro de 2020, os 20 candidatos do Partido Democrata que se qualificaram para as duas noites de debates televisivos de quarta e quinta-feira (madrugada de quinta e sexta-feira em Portugal) tinham de deixar uma boa primeira impressão.
Para a maioria deles, esta foi a primeira oportunidade para se apresentarem a milhões de eleitores, que só agora começam a prestar atenção à campanha. E, também como é habitual nestas situações, poucos conseguiram descolar-se do anonimato e saltar para o grupo da frente, onde já se destacavam nomes como o antigo vice-presidente dos EUA, Joe Biden, e a estrela das primárias do Partido Democrata em 2016, o senador Bernie Sanders.
Graças aos caprichos do sorteio, o primeiro debate entre dez dos 20 candidatos não juntou muitos pesos-pesados – os candidatos que ou são muito conhecidos, ou estão mesmo dispostos a ficar na corrida até ao fim. Com menos necessidade de jogarem ao ataque por não terem ao seu lado, no mesmo palco, adversários que lutam pela mesma fatia do eleitorado, os candidatos puderam discutir mais as suas propostas políticas e explicar como se posicionam em relação aos grandes temas em debate nos EUA – os cuidados de saúde, a economia, a imigração ou as novas ameaças de guerra do Presidente norte-americano contra o Irão.
Warren à conquista da ala esquerda
Nesse primeiro debate, na noite de quarta para quinta-feira, a senadora Elizabeth Warren conseguiu justificar a sua recente subida nas sondagens e mostrou ao eleitorado que pode disputar com Bernie Sanders a ala mais à esquerda do Partido Democrata.
E o papel do desconhecido que surpreendeu muita gente coube a Julián Castro, um antigo secretário da Habitação na Administração Obama e ex-mayor de San António, no Texas, que pode deixar para trás os outros candidatos que não têm mais do que 1% nas sondagens. Se isso acontecer, e se Castro mantiver a boa forma nos próximos debates, pode beneficiar de um efeito de bola de neve que já aconteceu noutras situações – como Bill Clinton nas primárias de 1992 ou Barack Obama em 2008.
Para além da prestação geral, Julián Castro foi também o responsável por uma das tiradas da noite – aqueles momentos que são transmitidos pelas televisões e partilhados nas redes sociais vezes sem conta nos dias a seguir aos debates, e que podem ser essenciais para a subida de popularidade de um candidato menos conhecido.
Numa noite em que o ex-congressista do Texas Beto O’Rourke surpreendeu ao dirigir-se aos telespectadores num espanhol quase perfeito, e em que o senador Cory Booker tentou imitá-lo mas com mais dificuldade, Julián Castro despediu-se com uma frase que arrancou fortes aplausos: “No dia 20 de Janeiro de 2021, vamos dizer adiós a Donald Trump.”
Mas o segundo debate, que decorreu na madrugada desta sexta-feira (hora em Portugal), tinha tudo para ser o prato forte da semana. No mesmo palco estavam vários duelos em preparação. Entre Joe Biden e Bernie Sanders pela liderança nas sondagens e pelo caminho ideológico do Partido Democrata, mais ao centro ou mais à esquerda; entre Bernie Sanders e Kamala Harris, pelo título de melhor representante da ala progressista, onde Elizabeth Warren também tem uma palavra a dizer; entre Kamala Harris e o presidente da Câmara de South Bend, no estado do Indiana, Pete Buttigieg, pelo estatuto de estrela em crescimento, que Julián Castro também quer disputar; ou entre as questões de sempre: jovens contra velhos, homens contra mulheres, progressistas contra conservadores.
Tal como na primeira noite, no segundo debate também houve duas figuras que se destacaram, mas ao contrário do que se poderia esperar, nenhuma delas se chama Biden ou Sanders. Desta vez, Kamala Harris fez de Elizabeth Warren, ao impor-se na ala progressista, e Pete Buttigieg seguiu os passos de Julián Castro na difícil tarefa de escapar ao anonimato.
Biden na berlinda
Ainda que o alinhamento de candidatos fizesse esperar um debate mais ao ataque do que o da primeira noite, a forma como a senadora Kamala Harris atirou Joe Biden para o centro do palco, apresentando-o como um político desfasado dos tempos modernos, foi surpreendente.
É sabido que Biden, de 76 anos, tem um longo passado no Senado norte-americano que remonta ao início da década de 1970, quando questões como o combate ao racismo e a luta pela igualdade de género não faziam parte das prioridades do Partido Democrata, e eram mal vistas por muitos sectores no Partido Republicano.
Nas últimas semanas, Joe Biden recordou esses tempos para dizer que até naquele contexto foi capaz de dialogar e chegar a acordo com senadores racistas. Mas o que era suposto ser uma mais-valia para o antigo vice-presidente dos EUA, transformou-se rapidamente num peso para a sua campanha, depois de Cory Booker e Kamala Harris (ambos afro-americanos) o terem acusado de contribuir para prolongar o racismo no país.
“Vou falar directamente para o vice-presidente Biden”, disse Harris, virando-se e apontando na direcção do candidato. “Não acredito que você seja racista, e concordo consigo quando se compromete com a importância de encontrar um terreno comum.”
Só que depois disso, veio o “mas”: “Mas também acho, e isto é uma questão pessoal, que foi muito doloroso ouvi-lo falar sobre a reputação de dois senadores dos EUA que construíram as suas reputações e carreiras em cima da segregação neste país. E não foi apenas isso; você também trabalhou com eles para se opor ao busing.”
A senadora Harris referia-se a uma política de combate à segregação racial no país, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, em que as crianças afro-americanas eram transportadas de autocarro para escolas de maioria branca, para garantir uma maior diversidade.
“E nessa época havia uma criança na Califórnia que era levada de autocarro todos os dias para a escola”, disse Kamala Harris a Joe Biden. “Essa criança era eu.”
Naquela altura, o então jovem senador Joe Biden opunha-se à política, uma posição que era partilhada por senadores racistas no Partido Republicano. Para os críticos do busing, os alunos afro-americanos eram prejudicados porque perdiam muito tempo de estudo enquanto viajavam de casa para a escola, longe de casa, ou porque acabavam por ser colocados em escolas com ambientes hostis; os defensores dizem que aqueles e outros argumentos eram também usados por racistas para justificarem a segregação.
Joe Biden ficou visivelmente perturbado com as palavras de Kamala Harris, e sublinhou o seu passado em defesa dos direitos dos afro-americanos, uma parte do eleitorado que terá de disputar com a senadora da Califórnia – Biden beneficia de uma boa imagem por causa dos oito anos ao lado do Presidente Barack Obama, e Harris é acusada em alguns sectores de ter sido dura de mais com os afro-americanos quando foi procuradora-geral da Califórnia.
No final dos debates, ainda que os dois favoritos não venham a ser prejudicados nas sondagens, a partir de agora têm de olhar com mais atenção para o pequeno grupo que se começa a formar atrás deles: Warren, Harris, Buttigieg e Castro parecem ter descolado do pelotão para se aproximarem do grupo da frente.
Os próximos debates realizam-se em Julho, numa altura em que a lista de participantes pode encolher por causa dos critérios cada vez mais exigentes da direcção nacional do Partido Democrata. Se a decisão fosse tomada hoje, apenas nove dos 20 que foram seleccionados para os debates desta semana estariam nos debates de Julho. E para a terceira ronda, em Setembro, só restariam seis: Joe Biden, Bernie Sanders, Elizabeth Warren, Kamala Harris, Pete Buttigieg e o ex-congressista do Texas Beto O’Rourke.