Explicação de Mísia, ou as muitas vidas de uma voz
No fado e fora dele, “livre de espartilhos”, Mísia jogou e ganhou. Pura Vida, apresentado terça-feira ao vivo no São Luiz, tradu-la por inteiro. Apaixonadamente.
Quem foi ao São Luiz, na noite de 25 de Junho, não esperaria aquilo: no final do espectáculo de apresentação de Pura Vida, Mísia pediu uma cadeira, sentou-se à beira do palco e começou a conversar com a audiência. Falando, respondendo a perguntas, dizendo adeus aos que, entretanto, tinham de sair – e eram poucos, porque a maioria ali ficou, frente a ela, como numa sala de estar. E a conversa continuou, animada, até Mísia passar ao hall do teatro, para assinar discos.
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Quem foi ao São Luiz, na noite de 25 de Junho, não esperaria aquilo: no final do espectáculo de apresentação de Pura Vida, Mísia pediu uma cadeira, sentou-se à beira do palco e começou a conversar com a audiência. Falando, respondendo a perguntas, dizendo adeus aos que, entretanto, tinham de sair – e eram poucos, porque a maioria ali ficou, frente a ela, como numa sala de estar. E a conversa continuou, animada, até Mísia passar ao hall do teatro, para assinar discos.
Dir-se-ia que Mísia, fazendo do concerto um recital (o seu insistente cuidado em apresentar autores de letras e poemas, bem como os autores das músicas, é raro entre cantores), quis prolongá-lo na fala, explicando-se, satisfazendo curiosidades várias, mas sobretudo mostrando uma proximidade que no passado, talvez por ignorância ou desfaçatez, alguns insistiam em negar-lhe. Seria uma diva distante, inacessível, morando no estrangeiro, talvez mesmo nascida lá, estranha aos meios do fado. Disso ela se ressentiu, ao longo dos anos, mas sem nunca baixar a guarda. Batalhou, fez-se aos palcos, aos discos, chegou o mais longe que pôde – e disso nos dão conta inúmeros textos, críticas, entrevistas e reportagens em jornais e revistas de todo o mundo. Depois, como n’O Sétimo Selo de Bergman, puseram-lhe à frente um tabuleiro e deram-lhe o mesmo temível adversário de vestes negras. Ela enfrentou-o, jogou, viu-se ameaçada por mais de uma vez, mas acabou por vencer. E foi dessa mais recente batalha, desse jogo entre vida e morte (ela já disse, uma vez: “No fado gosto só de cantar a vida, a morte e o que está no meio”; que é, afinal, tudo), que nasceu Pura Vida, o disco.
E na sala lisboeta do São Luiz ouviram-se, embora por ordem diferente do alinhamento original, todos os seus temas, a começar em Ausência e a acabar nesse extraordinário tango que é Preludio para el año 3001, de Horácio Ferrer e Astor Piazolla, ficando para extras Viagem e Lágrima (fado de Amália que Mísia já tantas vezes cantou). Pelo meio, ainda se ouviu um tema que não entrou no disco: Balada tradicional, de Vasco Graça Moura, uma balada de Coimbra a voz e piano, o piano de Fabrizio Romano, maestro napolitano e figura fulcral na direcção musical e arranjos do disco.
Depois vieram as perguntas, e a conversa. Se fosse uma flor, qual seria? Peónia, respondeu Mísia, que entrara em palco com a mesma coroa de espinhos dourada com que surge na capa do disco, tirando-a antes de cantar. Aos que, ali, procuravam situá-la, ou perceber onde deveriam situá-la, ia respondendo: “Não sou uma pessoa sintética, tive várias crises de identidade”; para, contrariando o cliché socrático “sou uma cidadã do mundo”, confessar singelamente: “Sinto-me do Porto.” E logo ela, dividida na ascendência entre Portugal e Espanha e apegada pela vida a tantos outros lugares.
Voltando à alegada inacessibilidade de Mísia, pretexto para se afastarem dela nos anos 1990, quando deu os primeiros passos sérios no fado, é curioso reler uma crónica de Eduardo Prado Coelho datada de 2 de Fevereiro de 2000 (na secção O Fio do Horizonte, que ele manteve durante largos anos no PÚBLICO) e intitulada “O caso Mísia”. Foi em 1997, em Paris, que ele arriscou chegar perto dela. “Fiz questão em conhecer de perto uma personalidade de que muitos dos meus amigos portugueses falavam com a mais agressiva sobranceria.” O espectáculo, a que ele assistira, tinha sido um êxito e, animado por isso, dirigiu-se ao camarim. “Aí descobri uma personalidade muito mais ‘fácil’, ‘acessível’ e ‘desenvolta’ do que aquela que se poderia adivinhar através da sua hierática presença em palco. Pouco tempo depois, Mísia recebia uma das mais importantes recompensas musicais em França: o Prémio da Academia Charles Cros. Mas em Portugal continuava a ouvir dizer que desafinava e não sabia o que era o verdadeiro fado.”
E terminava assim: “Pode-se gostar ou não gostar, mas é difícil recusar a coerência e obstinação impecáveis de um percurso artístico que neste momento faz de Mísia um dos grandes nomes da canção portuguesa no mundo.”
Neste outro tabuleiro, de jogo não fácil mas menos arriscado, também Mísia jogou e ganhou. No fado e fora dele, “cheia de liberdade de espírito” e “livre de espartilhos”, como disse agora no São Luiz. Pura Vida tradu-la por inteiro. Apaixonadamente.