A guerra contra as drogas é uma guerra contra as pessoas. Mas que pessoas?
Para muitas pessoas que vivem em situação de maior privação económica, a venda de substâncias psicoactivas ilícitas apresenta-se como uma estratégia de inserção económica viável para quem não tem, à partida, oportunidades de trabalho ou condições remuneratórias dignas.
O consumo de drogas é um comportamento ancestral. Praticamente todas as pessoas em algum momento da sua vida já consumiram, ou irão consumir, algum tipo de substância legal ou ilegal. Virtualmente, todos/as podemos aceder aos potenciais benefícios que o uso de determinadas substâncias psicoactivas permite. No entanto, as penalizações legais e sociais destes consumos atingem de forma desproporcional diferentes segmentos da população sendo, invariavelmente, mais fustigados aqueles que são social e economicamente mais desfavorecidos.
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O consumo de drogas é um comportamento ancestral. Praticamente todas as pessoas em algum momento da sua vida já consumiram, ou irão consumir, algum tipo de substância legal ou ilegal. Virtualmente, todos/as podemos aceder aos potenciais benefícios que o uso de determinadas substâncias psicoactivas permite. No entanto, as penalizações legais e sociais destes consumos atingem de forma desproporcional diferentes segmentos da população sendo, invariavelmente, mais fustigados aqueles que são social e economicamente mais desfavorecidos.
A Global Comission on Drug Policy (que reuniu esta terça-feira em Lisboa para apresentação do seu relatório anual) publicou este mês um artigo de posicionamento onde constata que, em diferentes contextos geográficos, pessoas de grupos sociais menos privilegiados em termos de classe, pertença étnica, nacionalidade e género são aquelas que se encontram mais expostas aos danos que frequentemente decorrem do uso de drogas em contexto proibicionista, são as que mais morrem de overdose, que mais vezes são encarceradas, mais sofrem de violência (demasiadas vezes institucional) e/ou de exclusão social.
Adicionalmente, o julgamento moral e a percepção social sobre o uso de drogas dependem também da classe social de quem as consome. Enquanto usos de determinadas drogas surgem como reforço ao status quo de classes sociais mais elevadas, os mesmos comportamentos são vistos como desviantes, degradantes e moralmente reprováveis se quem as utiliza forem pessoas com menos privilégio social. Para além de integrarem grupos minoritários ou economicamente desfavorecidos, estas populações têm de coabitar com a intersecção de vários estigmas que têm graves impactos na sua saúde e segurança, que as desprotegem em termos de direitos sociais e humanos e as privam da sua dignidade enquanto cidadãos e cidadãs de plenos direitos. Por esse motivo, quando discutimos questões que dizem respeito à regulamentação das drogas, é importante pensarmos para além da nossa circunstância e do nosso privilégio e olharmos de forma compreensiva para o que os números denunciam.
No que diz respeito às pessoas condenadas no âmbito da Lei da Droga em Portugal existem três tipos de crimes possíveis: o consumo, o tráfico e o tráfico-consumo. Desde logo é interessante fazer notar, para quem andou mais distraído/a, que afinal o consumo de drogas não está totalmente descriminalizado em Portugal. Acima de certas quantidades (isto é, doses necessárias para mais de dez dias) continua a existir penalização pela posse de substâncias para consumo. Segundo dados do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), em 2017 foram condenadas por crime de consumo 723 pessoas em Portugal, destas 579 por consumo de cannabis. No que diz respeito ao tráfico foram condenadas 580 pessoas por crimes relacionados com cannabis.
Se olharmos para os dados do Inquérito Nacional sobre Comportamentos Aditivos em Meio Prisional verificamos que em 2014, 26% das pessoas em situação de reclusão estavam detidas por tráfico de droga e 11% por tráfico para consumo. No caso das reclusas mulheres, o número das condenadas por tráfico sobe para 41% e apesar do crime de tráfico ser transversal às diversas faixas etárias, torna-se mais significativo nas faixas etárias mais jovens (23% tem menos de 25 anos e 50% tem menos de 35 anos). Quando olhamos para os dados da população reclusa no seu todo, estes corroboram o que dissemos até aqui. A esmagadora maioria das pessoas detidas (73%) não tem mais que o 9.º ano (ensino básico) e 27% estavam em situação de desemprego antes de serem detidas. Ainda, 15% da população reclusa é estrangeira, na sua maioria de Países Africanos da Língua Oficial Portuguesa, existindo uma sobrerrepresentação de pessoas estrangeiras de determinadas nacionalidades no nosso sistema prisional. Percebemos, então, que as pessoas detidas por crimes relacionados com drogas e/ou outros são pessoas jovens, desempregadas, com baixa escolaridade, muitas vezes migrantes e negras.
Mas por que razão é que as características da maioria das pessoas que consome drogas são diferentes daquelas que estão envolvidas nas redes de produção e tráfico de substâncias ilícitas? Para muitas pessoas que vivem em situação de maior privação económica, a venda de substâncias psicoactivas ilícitas apresenta-se como uma estratégia de inserção económica viável para quem não tem, à partida, oportunidades de trabalho ou condições remuneratórias dignas. Estas redes de economia informal são, frequentemente, das poucas estratégias de sobrevivência que algumas pessoas têm, mesmo sabendo que esta escolha as vai obrigar a coabitar com insegurança, risco e violência de variada ordem.
A lei que descriminalizou o consumo de drogas regulamentou o mercado da procura, mas deixou desregulado o mercado da oferta. Ou seja, supostamente, não é crime consumir drogas em Portugal (já vimos que não é bem assim), mas é crime vender. Sempre que há alguém disposto a comprar para consumir, alguém tem de cometer o crime de produzir, transportar e vender. E, frequentemente, são as pessoas economicamente mais fragilizadas e em situação de exclusão que, por força da necessidade, se sujeitam aos riscos de distribuir. Isto torna-se óbvio pela análise destes números: o consumo é transversal, pessoas ricas e pobres consomem drogas, mas quem “faz o trabalho” para as drogas chegarem a nossa casa e as consumirmos num regime quasi-legal, são as pessoas pobres.
Por esse motivo, quando falamos de drogas, de políticas de drogas e de intervenções com pessoas que utilizam estas substâncias é importante parar de branquear o discurso e de reproduzir narrativas que, de forma unilateral, apontam sempre o dedo aos suspeitos do costume, as pessoas com menos recursos. Temos o dever de nos lembrarmos que, antes de ser um problema de ordem e saúde pública, o consumo de drogas é uma questão de direitos humanos que cruza graves desigualdades que as políticas proibicionistas agravam.
Esta quarta-feira é o Dia Internacional da Luta Contra o Uso e Tráfico Ilícito de Drogas, um dia em que os governos um pouco por todo o mundo celebram a luta contra as drogas e o proibicionismo. Mas é também o dia em que se relança a campanha global Support Don’t Punish, que chama a atenção para os danos causados pela criminalização das pessoas que usam drogas e advoga pela implementação de políticas de drogas focadas no bem-estar, saúde e nos direitos das pessoas. É ao lado desta última que a Kosmicare se situa, por políticas mais compreensivas, humanas e baseadas na evidência.