A dualidade de Rage 2
Dotado de um sistema de combate pensado para a diversão, a obra esqueceu-se que um mundo de jogo não precisa apenas de ser enorme. Precisa também de ser motivador.
Tem de haver uma certa desfocagem na forma como os videojogos em mundo aberto são abordados. Há as cenas controladas de perto pela produtora e os trechos que as unem, normalmente áreas enormes, passíveis de serem exploradas a nosso bel-prazer. Rage 2 é um jogo onde se sentem as discrepâncias entre essas duas componentes.
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Tem de haver uma certa desfocagem na forma como os videojogos em mundo aberto são abordados. Há as cenas controladas de perto pela produtora e os trechos que as unem, normalmente áreas enormes, passíveis de serem exploradas a nosso bel-prazer. Rage 2 é um jogo onde se sentem as discrepâncias entre essas duas componentes.
Fruto de uma colaboração entre a id Software e a Avalanche Studios, este é um título munido de um enorme mundo digital que, com o acumular das horas, revela a sua faceta mais aborrecida. No outro pólo estão as tais cenas mais contidas onde a acção é rainha; as tais cenas de luta pejadas de adrenalina que são o pináculo do jogo
As obras inseridas neste género têm habitualmente uma enorme dificuldade em conseguir estabelecer um arco narrativo profundo e Rage 2 não é excepção. Vestindo a pele de um ou de uma Walker (a escolha é do jogador), temos que travar as investidas de The Authority, um exército de máquinas liderado pelo General Cross. Acima de todos os devaneios excêntricos, a sua derradeira missão é eliminar o que resta da espécie humana de um mundo que não está na sua melhor forma.
Espalhados pelo cenário estão três líderes resistentes e nossos aliados na cruzada. O nosso trabalho é visitá-los, realizar as missões que nos são entregues e que pertencem à linha narrativa principal, fazer com que o trio atinja o nível cinco, e desferir o derradeiro ataque ao exército – investida que termina com um combate contra um boss.
Tal como poderão ler ao longo deste texto, há muito mais para fazer no mundo de jogo além das missões principais. Contudo, são estas tarefas que representam o progresso mais significativo no argumento. Entre clichés (incluindo o protagonista estar às portas da morte e voltar para ser coroado o grande obreiro de mais uma salvação da extinção) e falta de substância, terminado o jogo, fica a sensação de que poderia ter sido feito mais. Felizmente, depois da parada com os créditos finais, o mundo fica disponível para resolvermos quaisquer assuntos secundários que tenham ficado pendentes.
A produtora coseu retalhos com diferentes atmosferas no mapa, mas esqueceu-se de os dotar de pontos de interesse e acontecimentos que quebrem a monotonia. Outro dos problemas é que o esquema das missões nos leva a ir do ponto A ao ponto B, apenas para regressarmos ao ponto A novamente. Isto é repetido ad nauseam durante a campanha, rapidamente tornando-se uma vulgar tarefa.
É verdade que há a possibilidade, por exemplo, de desafiar transeuntes para corridas e há postos de controlo que devem ser conquistados – basicamente eliminando tudo o que mexa –, mas a sensação de estarmos presos num ciclo desenxabido nunca é verdadeiramente quebrada. Infelizmente, o aborrecimento entre os pontos de interesse é normativo nesta visão de um mundo pós-apocalíptico.
Esses pontos de interesse são as cenas onde podemos dar uso ao excelente sistema de combate. A obra espicaça a exploração do mapa à procura de Arks, espaços onde estão encerrados os Nanotrites, habilidades que vão promovendo a diversidade daquilo que o nosso Walker consegue fazer frente-a-frente com os inimigos.
Do duplo salto à regeneração automática da energia do protagonista quando apanhamos Feltrite (deixada no cenário quando os inimigos morrem e que pode ser também usada para subir o nível das habilidades), passando até pelo ressuscitar do Walker quando este sucumbe no campo de batalha, são inúmeros Nanotrites que podem ser melhorados.
Por exemplo, um dos Nanotrites é designado como Slam – quando activado, permite ao protagonista provocar uma onda de choque saltando e embatendo contra o chão. O dano causado pela onda de choque aumenta até 150% se melhorarem a habilidade até ao terceiro nível. Tendo em consideração que são mais de dez habilidades e que cada uma conta com vários níveis, compreende-se o ciclo que Rage 2 alimenta: matem para arranjar Feltrite, usem Feltrite para melhorar a personagem e aniquilar os inimigos de formas mais diversificadas.
Se tudo isto faz o jogo parecer altamente personalizável, é porque o faz – e não é tudo. Além dos diferentes níveis, cada habilidade tem um esquema de Perks, ou seja, de vantagens divididas por patamares que tornam a personalização da personagem ainda mais próxima do que cada jogador precisa no campo de batalha. Voltando ao Slam, há um Perk no Tier 2 que cria um Buraco Negro quando o Walker embate no chão, Buraco Negro que aumenta de tamanho e força se investirem os vossos Nanotrite Boosters no Tier 3. Imaginem isto multiplicado por todas as habilidades e ficam com uma ideia mais concreta da complexidade e satisfação que este sistema de melhorias proporciona.
Não satisfeita com este empreendimento, a produtora faz com que cada um dos vossos aliados tenha também Projects, mais árvores de habilidades que podem ser desbloqueadas usando Project Points. É um trabalho de minúcia, pensado para incentivar o jogador a passar a pente fino todos os sectores do mapa à procura daquilo que posteriormente permitirá desbloquear este tsunami de melhorias.
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Na prática, isto beneficia o sistema de combate numa obra com dezenas de horas. Com este gradual e constante desbloquear de novos processos, há quase sempre algo para descobrir e aprender, reformulando a nossa postura nos tiroteios. O cerne da jogabilidade é refinado e frenético, fazendo relembrar parcialmente Doom, obra que pertence ao currículo da id Software. Também benéfico para a jogabilidade é um poder balístico insano, incluindo a BFG 9000, arma que chega de Doom.
A equipa de desenvolvimento tem outro trunfo na manga para aumentar a intensidade dos combates: o modo Overdrive. Quando activado, o ritmo dos tiroteios atinge um nível ainda mais elevado. Não só o dano causado é temporariamente aumentado, como beneficiamos de uma regeneração momentânea de energia, o que permite não ter medo de ir para o meio do campo de batalha. Tudo isto aliado ao espectáculo de luz e som que as incontáveis melhorias vão acrescentando é um passaporte para batalhas frenéticas, caóticas e derradeiramente memoráveis.
Rage 2 não se leva demasiado a sério e isso ajuda ao factor diversão. Quando olhamos para as armas que temos disponíveis depois de desbloqueadas e o lança-mísseis “inteligente” está longe de ser o destaque, sabemos que o caos e o fogo-de-artifício estão assegurados. E sim, as armas têm também inúmeras melhorias disponíveis que podem ser desbloqueadas usando Feltrite.
Outro dos aspectos onde se nota a presença do factor entretenimento é nos veículos que vamos tendo oportunidade de conduzir. Muitos apontamentos no design parecem saídos de Mad Max, obra desenvolvida pela Avalanche Studios, mas é na diversidade e na escala que este parque “automóvel” brilha. Carros, motos, tanques, monster trucks, uma escavadora “porque nem mesmo o apocalipse consegue destruir estes magníficos veículos”. Enfim, é uma garagem que não desilude.
O grafismo foi criado para transmitir a sensação de vastidão, levando os jogadores por terras de areia e sol enquanto procuram mais uma estação para atacar ou defender, enquanto viajam até chegarem ao próximo covil recheado de inimigos à espera de serem aniquilados. Missões e tarefas com fartura para aumentar a longevidade da obra.
O enorme mapa perde no detalhe, mesmo quando somos levados temporariamente a regiões onde abunda a vegetação. Não faltam quilómetros para percorrer, falta sim é motivação para o fazer. O caso muda ligeiramente de figura nas cidadelas que visitamos, visões de um futuro que correu terrivelmente mal, mas que apresentam mais atenção ao detalhe na sua edificação caótica e vertical.
Finalmente, uma nota para a sonoplastia. Como provavelmente adivinharam, o foco continua a ser os efeitos das armas, ficando relegada para segundo plano muita da vocalização que dá vida a linhas de diálogo condizentes com o resto da escrita: quando chegarem ao final, a maioria já terá sido esquecida. Mesmo no derradeiro confronto, as frases são estilo pastilha elástica: inconsequentes, à espera de serem deitadas fora pelas recordações que mais uma sessão de Overdrive vai permitir.
Jogar Rage 2 é passar da desfocada e turva visão do que um mapa de jogo deve ser para a precisão e a acutilância do sistema de combate. Profundo e personalizável, cada confronto é o destilar do nosso empenho até então. É uma pena que os pontos de ligação entre cada estrondo sejam uma canção de embalar, uma desilusão e um quase nada. Este resquício de humanidade vive no meio de tanta morte.