Jogos de Guerra no Golfo Pérsico
Nem Donald Trump nem o ayatollah Khamenei querem a guerra. Mas está em curso um princípio de escalada cuja dinâmica não depende apenas da vontade dos actores e pode acabar em catástrofe. O Irão precisa de alarmar o mundo para travar a América.
1. Não há qualquer indicação de que Donald Trump ou o ayatollah Khamenei queiram a guerra. A nenhum interessa. Mas foi posta em marcha uma engrenagem que pode desembocar numa escalada de desfecho catastrófico, porque a sua dinâmica não depende apenas dos desejos e cálculos dos antagonistas mas também de inesperados incidentes. Para Teerão o bloqueio económico americano é “um acto de guerra”, a que responderá, se necessário, com um cenário de catástrofe “para forçar o mundo a travar Washington”.
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1. Não há qualquer indicação de que Donald Trump ou o ayatollah Khamenei queiram a guerra. A nenhum interessa. Mas foi posta em marcha uma engrenagem que pode desembocar numa escalada de desfecho catastrófico, porque a sua dinâmica não depende apenas dos desejos e cálculos dos antagonistas mas também de inesperados incidentes. Para Teerão o bloqueio económico americano é “um acto de guerra”, a que responderá, se necessário, com um cenário de catástrofe “para forçar o mundo a travar Washington”.
Na ausência de uma estratégia, Trump parece apostar tudo numa receita mágica, a “máxima pressão”, para asfixiar e impor a rendição do adversário. Se tudo indica que não se quer lançar numa guerra, está rodeado por um “partido da guerra”, capitaneado pelo conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, um veterano que já advogou várias guerras desde 2003 e que, segundo o analista Philip Gordon, tem uma opinião firme sobre o Irão: “Só há uma maneira de parar o programa nuclear iraniano, é bombardeá-lo.” Bolton não é o decisor mas contribui para o clima de alarme.
O analista irano-americano Vali Nasr admite que, perante a desproporção de forças militares, “os líderes do Irão estejam a mostrar que têm a capacidade de serem tão loucos como a América”. E querem que o mundo acredite nisso. É um aviso às potências e aos vizinhos inimigos. Especula-se, até, sobre um bloqueio do Estreito de Ormuz, por onde passam 20% das exportações mundiais de petróleo. Diz ao New York Times um especialista: “É uma mensagem directa aos sauditas e aos Emirados. Se for ‘estrangulado’, também os outros grandes fornecedores o serão. [Os iranianos] esperam que os Emirados e os sauditas acabem por pressionar a Administração americana a ‘arrefecer’ a sua estratégia.”
2. Teerão permanece prudente: não quer alienar os seus apoios na Europa, na Rússia ou na China. Mas observa Gérard Araud, ex-embaixador francês em Washington: “Uma retaliação restrita não antagonizará os europeus. O Irão é politicamente forçado a reagir às sanções americanas.”
Ali Vaez, director do programa Irão no International Crisis Group, insiste no risco dos erros de interpretação: “Parece que a percepção pelo Irão de uma ameaça na sequência das movimentações militares americanas na região provoca, por sua vez, uma percepção exacerbada da ameaça iraniana entre os americanos.”
Os EUA e o Irão estão em conflito aberto desde que Donald Trump denunciou, em Maio de 2018, o acordo nuclear de 2015 para, logo a seguir, decretar unilateralmente sanções contra Teerão. Essa decisão foi também um desafio à soberania dos outros Estados. Os americanos tinham o direito de abandonar o acordo. Mas não se limitaram a denunciá-lo. Decretaram sanções que punem os outros Estados soberanos que o subscreveram.
3. Nos últimos dois meses, começou uma escalada. Os Estados Unidos lançaram o que seria a etapa final de asfixia económica do Irão, prevendo cortar o que resta da sua exportação de petróleo. Proíbem também o Irão de exportar os excedentes de urânio ligeiramente enriquecido e de água pesada.
No dia 8 de Maio, Teerão deu aos subscritores do acordo nuclear de 2015 – Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, China, Rússia e Alemanha – um prazo de 60 dias para cumprirem o acordo e suspenderem as sanções. A partir de 27 de Junho, os iranianos recomeçarão a acumular urânio enriquecido acima dos limites acordados, o que significa uma violação do acordo que até agora têm cumprido estritamente – segundo a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA).
Esta decisão é um sinal enviado aos europeus, que tentam manter o acordo vivo mas que não têm meios para se opor aos americanos. As empresas suspendem os investimentos e recusam exportações, incluindo os laboratórios farmacêuticos. Não correm riscos por temor das sanções americanas. Este é também um teste à “soberania comercial europeia”, para usar os termos do ministro da Economia francês, Bruno Le Maire.
Houve quem falasse num ultimato à Europa. François Nicoullaud, ex-embaixador da França em Teerão, interpreta de outra forma a mensagem do Irão: “É sobretudo um pedido de socorro.”
A “campanha de máxima pressão” funciona em pleno. Descreve a The Economist: “O impacto foi devastador. No ano fiscal de 2018-19, o Produto Nacional Bruto do Irão caiu 4,9% em relação ao ano anterior. A produção industrial caiu quase tanto como a do petróleo. O preço dos alimentos triplicou e os medicamentos estão a faltar.” E novas sanções estão na forja, anuncia Washington. Em breve serão suspensas as isenções concedidas a países como a China, a Turquia, a Índia ou o Japão para importarem petróleo iraniano. Que sucederá?
4. Quando em Agosto passado, Trump aplicou sanções ao Irão, deu, entre outras justificações, a de que o Irão se tornou demasiado poderoso. Teerão aumentou, claramente, a sua influência na última década. A verdade é que os seus sucessos estratégicos devem muito aos Estados Unidos, graças ao desastre do Iraque, que não só derrubou o “dique de contenção” dos persas, que era Saddam Hussein, como colocou os xiitas no poder e fez de Bagdad um aliado de Teerão. Muito deve também aos vizinhos sunitas, sobretudo à Arábia Saudita, com a sua desastrosa política “jihadista” na Síria.
De resto, se o Irão é uma potência regional, jamais poderá exercer a hegemonia no Médio Oriente, porque é etnicamente persa e rodeada por árabes, também poderosos. As suas despesas militares estão muito abaixo das de Israel, da Arábia Saudita ou do Egipto.
O acordo de 2015, durante a Administração Obama, marcou uma “viragem tectónica” na política americana para o Médio Oriente. Perante a erosão dos Estados árabes, os EUA apostaram em que uma cooperação estratégica com o Irão contribuiria para diluir a grande fractura entre sunitas e xiitas, que dilacerou a região. Apostavam também numa nova ordem que não assentaria apenas nos Estados árabes, como o Egipto e a Arábia Saudita, mas também em não árabes, como a Turquia, o Irão e Israel. Escreveu o analista Leslie Gelb: “A Administração Obama procurou algo mais do que cercear o programa nuclear iraniano e conseguiu-o: a oportunidade estratégica de converter o Irão de inimigo em ‘amigo’.” Esta orientação era apoiada pelo establishment da política externa norte-americano, o mesmo que hoje critica maciçamente Trump.
Donald Trump, cujo pensamento geopolítico era desconhecido, assumiu desde a campanha eleitoral o objectivo de liquidar esta política. Como ajuste de contas com Obama? Que fazer agora? Ele diz que não quer guerra nem impor uma “mudança de regime”. Propôs uma nova negociação em condições humilhantes para o Irão. Está a atirar Teerão para os braços de Moscovo.
Comentou, em Maio, o analista americano Stephen Walt: “A máxima pressão colocou os Estados Unidos perto de uma guerra. (…) Trump tem de convencer o Irão de que é sério. Precisa do apoio dos outros signatários do acordo nuclear e das potências mundiais para convencer o Irão do seu compromisso de negociação. Tem de perceber que o unilateralismo e a máxima pressão já deram o que tinham a dar.” Trump não o terá lido.