Há quem chame casa aos antigos abrigos dos “bandeirinhas” do Barreiro
Em 2019, às portas de Lisboa, há pessoas a viver sem água, luz ou gás. Sem sequer ter uma casa de banho. Paula Pepê não sabe o que fazer nem onde se dirigir para que possa ter uma casa. “Em pleno século XXI, viver assim”.
Passa pouco das 10h da manhã e Paula está inquieta. Marcara como ponto de encontro a estação fluvial e ferroviária do Barreiro para dali mostrar o lugar a que tem chamado casa nos últimos meses. Para isso, é preciso percorrer todo o parque de estacionamento da estação em direcção à linha do comboio. Depois, é preciso passar por um buraco feito na rede que delimita os carris.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Passa pouco das 10h da manhã e Paula está inquieta. Marcara como ponto de encontro a estação fluvial e ferroviária do Barreiro para dali mostrar o lugar a que tem chamado casa nos últimos meses. Para isso, é preciso percorrer todo o parque de estacionamento da estação em direcção à linha do comboio. Depois, é preciso passar por um buraco feito na rede que delimita os carris.
Dali, do outro lado da linha, avista-se já uma pequena casa, muito próxima a umas oficinas de manutenção, rabiscada com graffitis e com um telhado coberto por um plástico. De uma coisa se pode estar logo certo: não se pode chamar àquilo casa.
Paula Pepê nasceu em Campo Maior, no distrito de Portalegre, mas os pais trouxeram-na para Lisboa com dois anos. É por isso que diz que Lisboa é que é a terra dela. Hoje tem 52 anos, ainda que pareça que mais anos lhe estão gravados na pele. Em Outubro do ano passado, ocupou com o filho Vítor uma construção antiga que em tempos abrigou os “bandeirinhas” — os homens e as mulheres responsáveis por assinalar se era ou não seguro atravessar a linha do comboio. Fê-lo porque ficou sem tecto. E estar ali sempre era melhor do que dormir ao relento.
Pelo caminho, vai dando indicações. “Podem atravessar. Eu já sei que agora não passa o comboio. Cuidado para não caírem”. Do outro lado da linha, lá está a pequena casa. À entrada, cacos de telhas antigas acumulam-se no chão. Paula bate à porta. “Vítor, podes abrir. Estão aqui os senhores”. Ele abre a porta que construiu improvisadamente com tábuas de madeira.
Vítor tem 31 anos, mas só “há oito ou nove” se reencontrou com a mãe. “Eu não criei os meus filhos. Este ficou com a avó e o irmão ficou com uma pessoa também da família. Esse está em Inglaterra”, conta Paula. O marido e pai dos filhos era “agarrado ao álcool”. Ela ficou viúva e sem grandes condições para os criar. Desde então, tem andado sempre a saltar de trabalhos precários em trabalhos precários, sem contratos, sem descontos, outras vezes a recibos verdes.
Viveu grande parte da vida em quartos em Lisboa e foi recebendo apoio de algumas instituições. Chegou a mudar-se com o filho para uma casa em Vila Franca de Xira. Mas se a casa tinha um preço razoável, os transportes custavam-lhe muito. Acabaram por voltar a um quarto em Lisboa que também tiveram de abandonar. O preço das casas em Lisboa também subiu e como ambos estavam sem trabalho não tinham como continuar a pagar uma renda.
Um amigo disse-lhes que aquela casinha, no Barreiro, estava vazia, e que, pelo menos, ali se poderiam abrigar, ter um tecto para não dormirem ao relento. “Não tínhamos para onde ir. Isto foi mesmo um desenrasque”, diz Vítor.
“Temos de fazer no balde”
As paredes são tijolos de barro, revestidos por cimento que falta em algumas partes. O telhado está coberto por uns plásticos pretos. “A primeira noite que passámos aqui até víamos as estrelas”, recorda Vítor. Quando lá chegaram, a casa estava cheia de lixo. Vítor limpou-a, tirou as telhas velhas para que não lhes caíssem em cima enquanto estivessem a dormir. Do lado de lá da linha ainda se vê o entulho dali retirado. “O meu filho limpou isto tudo e metemo-nos aqui dentro”, recorda Paula.
Atravessada a porta, logo à entrada há umas cordas com peças de roupa penduradas. No chão, amontoam-se os sacos de plástico e caixas que guardam a vida deles ali toda encaixotada. Estão tapadas com um grande plástico para que não lhes chova em cima. Ao fundo, o colchão onde dormem, com uns cobertores por cima, ocupa quase toda a largura da casa.
Não têm luz, nem sequer janelas — a única luz sai de uma lanterna alimentada com pilhas. Não têm água, nem gás, nem móveis. Nem sequer uma casa de banho. “A gente aqui tem de fazer para um balde”, diz Paula.
Há um garrafão de água encostado à parede que serve para lavar a cara ou os dentes. Costuma ir tomar banho e levar a roupa para lavar às Irmãs Oblatas, uma associação em Lisboa que lhe presta algum apoio.
Têm um fogareiro pequenino, mas não conseguem cozinhar lá dentro porque têm medo que pegue fogo às traves de madeira do telhado. “Uma vez estávamos aqui a fazer um assado e apareceram os bombeiros”, conta Paula. Acaba por comprar qualquer coisa já feita. Ali, as carrinhas das associações que diariamente distribuem comida em Lisboa não passam. “Mas eu às vezes vou lá buscar e trago antes de voltar para aqui”.
Há umas semanas, Paula começou a tomar conta de uma idosa, em Arroios, Por isso, todos os dias apanha o barco para Lisboa. Ali, todos a conhecem porque também chegou a fazer limpezas na estação. Entra às 10h30 e sai às 17h. Trabalha aos fins-de-semana e tem uma folga por semana. Ganha 350 euros por mês. “Pelo menos, como lá”. O filho Vítor está a trabalhar “em biscates”. Quer agora começar a distribuir currículos em Lisboa. Mas isso só acontecerá quando a mãe receber o salário para que possa também comprar um passe.
O consolo e a companhia depois do trabalho é “a periquita” que mantêm com eles dentro de uma gaiola e que já os acompanha há uns anos. Antes de irem viver para o Barreiro, moravam num quarto nas Olaias, em Lisboa. Ao lado, havia várias casas municipais fechadas com portas blindadas, dizem. E isso é o que mais os revolta: “Porque é que a câmara tem casas e não as dá às pessoas?”, critica Vítor. A justificação da câmara costuma ser de que estas casas estão afectas aos programas de habitação municipal em curso e que não é justo que outras pessoas as ocupem. Mas isso não os convence.
Viver assim “em pleno século XXI"
Se nas últimas décadas, houve uma melhoria significativa no acesso à habitação — em 1981, quase 75 mil pessoas moravam em barracas pelo país, e outras 50 mil viviam em caravanas, casas de madeira ou outros locais não destinados à habitação; 30 anos depois, o número de pessoas a viver em barracas e habitações precárias tinha diminuído 86% — a crise no sector está a empurrar mais pessoas para viver em condições precárias, alertava há umas semanas a associação Habita, que trabalha pelo direito à habitação, no PÚBLICO.
A vida sem um tecto de verdade tem-lhe agravado os problemas de saúde. E apesar de não ter descontos nem idade para a reforma, diz que vai tentar pedi-la por invalidez porque há uns anos teve um acidente no pé do qual nunca se recuperou totalmente. “Mas eu prefiro estar a trabalhar. Pelo menos não estou aqui a pensar noutras coisas”, diz. A verdade é que também não sabe muito bem o que fazer nem onde se dirigir em busca de apoio. Entre Segurança Social, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ou câmara, acaba por perder-se na burocracia que lhe é exigida.
Enquanto a ajuda não chega, estão sozinhos, sem nada à volta, com medo do que ou de quem possa aparecer. “Já aqui apareceu uma cobra”, lembra Vítor. É o barulho dos comboios a raspar nos carris que acaba por marcar o ritmo dos dias. Quando passa o primeiro, não há mais descanso. Quando é o último é hora de dormir. “Em pleno século XXI, viver assim.”