O “turismo de plástico” não serve o Porto. 3 Pontinhos
A semelhança do nome artístico 3 Pontinhos com a marca da autarquia, Porto Ponto, é pura coincidência. Ainda que Luís de Carvalho não se esquive a brincar com ela. A sua arte de rua mistura humor com mensagens políticas e sociais. A última série de trabalhos centra-se na questão dos despejos
Quando o proprietário do espaço cultural Maus Hábitos partilhou no Facebook uma mensagem a comunicar aos amigos que, dez anos depois de um imbróglio legal, o estabelecimento tinha finalmente sido legalizado, Luís de Carvalho comentou a publicação com uma imagem. Era um trabalho, ainda em formato digital, sem um objectivo definido. Mas caía que nem uma luva naquele momento. “Porra…”, lia-se na imagem, onde não passavam despercebidas as semelhanças com o design da marca Porto Ponto, criada pela câmara já em 2014. As reacções multiplicaram-se, recordou o autor, e até o presidente Rui Moreira terá feito um like. Dessa criação, pôs nas ruas apenas um exemplar em formato físico: dois azulejos afixados no “quiosque do piorio”, que a Câmara do Porto decidiu encerrar há pouco mais de um ano. “Não criei aquilo como uma crítica, mas a ocasião faz o ofício”, explicou Luís, conhecido como 3 Pontinhos. Se Rui Moreira ainda acharia graça à sua arte, agora na rua, já não arrisca dizer.
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Quando o proprietário do espaço cultural Maus Hábitos partilhou no Facebook uma mensagem a comunicar aos amigos que, dez anos depois de um imbróglio legal, o estabelecimento tinha finalmente sido legalizado, Luís de Carvalho comentou a publicação com uma imagem. Era um trabalho, ainda em formato digital, sem um objectivo definido. Mas caía que nem uma luva naquele momento. “Porra…”, lia-se na imagem, onde não passavam despercebidas as semelhanças com o design da marca Porto Ponto, criada pela câmara já em 2014. As reacções multiplicaram-se, recordou o autor, e até o presidente Rui Moreira terá feito um like. Dessa criação, pôs nas ruas apenas um exemplar em formato físico: dois azulejos afixados no “quiosque do piorio”, que a Câmara do Porto decidiu encerrar há pouco mais de um ano. “Não criei aquilo como uma crítica, mas a ocasião faz o ofício”, explicou Luís, conhecido como 3 Pontinhos. Se Rui Moreira ainda acharia graça à sua arte, agora na rua, já não arrisca dizer.
O trabalho de 3 Pontinhos – baptizado Zé Pontinhos no Facebook por mera limitação colocada pela rede social, que proíbe números como nome – começou ainda na adolescência. Luís de Carvalho lembra-se bem desses anos de rebeldia onde colocava azulejos junto a talhos com frases provocadoras como “carne é crime”, conta sorridente. Por essa altura, ainda a morar em Aveiro, era já um “amante” da arte. Mas, como agora, não a imaginava uma profissão. Foi com essa filosofia em mente que acabou por eleger o Marketing como curso superior. As motivações já se aproximavam – “sobretudo a vontade de comunicar” – ainda que Luís admita a existência de um muro entre os dois mundos: “A base do marketing é também é essa ainda que não seja só isso”, disse numa conversa com o PÚBLICO, na primeira vez que mostrou a cara por detrás do artista que há uns cinco anos começou a expor o seu trabalho nas ruas do Porto.
A analogia entre o baptismo e a marca Porto Ponto, criada pela autarquia como imagem gráfica da cidade e já reconhecida com vários prémios, é quase incontornável. Mas Luís de Carvalho, 40 anos, clarifica que a 3 Pontinhos chegou primeiro. E com propósito definido: “A mensagem subliminar que quero passar é que cada trabalho, seja numa galeria ou na rua, vale por ele próprio. Não pela assinatura que tem anexa.” Usando apenas “…” para firmar um trabalho, o aveirense assume que assinatura pode ser copiada por qualquer um: “Até uma criança consegue fazer três pontinhos”, aponta.
A mais recente criação de Luís de Carvalho, exposta em três ou quatro pontos da cidade, é a aproximação a uma história mil vezes repetida e à qual se vai tornando impossível escapar. Também músico e letrista nos tempos livres, saiu-lhe um dia a frase “o meu coração ficará no Porto” enquanto escrevia uma letra sobre “gentrificação e especulação”, conta, uma reflexão sobre “a perda de habitantes, sobretudo em Lisboa e no Porto”. Foi essa a ideia recuperada nesta obra de arte de rua, onde mistura stencil e escultura.
A viver no Porto há quase vinte anos, Luís tem visto uma “evolução enorme” no centro e em particular na Rua de Santo Ildefonso, onde trabalha, na Galeria Geraldes da Silva. “Houve muita recuperação, o que é bom. Mas desapareceu muito comércio tradicional. Todos os meses desaparece e já não volta”, lamenta. A mensagem, sublinha, não é contra a mudança nem anti-turismo. É apenas uma lembrança sobre prioridades: “Uma cidade é feita por pessoas, não por casas. Caso contrário perdemos a nossa identidade. Só somos invictos até esta altura em que deixamos de ter a nossa independência.” E como se consegue, então, um meio-termo entre ter uma cidade reabilitada mas habitada por portuenses? “É preciso encontrar novos locais para as pessoas visitarem e questionar os benefícios deste turismo de plástico”, sugere: “Traz muito pouco de bom à cidade.”
O coração produzido com técnicas cerâmicas, levado ao forno e depois vidrado, já desapareceu de alguns dos locais onde foi instalado. Mas para Luís isso não é motivo de aborrecimento: “Toda a arte é efémera por isso não me chateia que desapareça.” Luís de Carvalho não se considera, aliás, um artista. Nem tem pretensões disso: “Não vivo da arte, quero viver para a arte”, explica. O investimento de “energia e tempo” nas suas criações é feito “por missão e por uma necessidade”. E aí reside talvez a razão pela qual não gosta de vender as suas peças – oferece, tem algumas expostas na galeria onde trabalha há oito anos. E não pretende passar daí.
Na sua “arte de rua popular” há quase sempre “mensagens políticas e sociais, muitas vezes com humor, mas sempre dando uma opinião”. Só com essa primazia faz sentido continuar: “Não procuro a beleza, mas a mensagem. Quando podem ser as duas, melhor.”
O primeiro trabalho apresentado nas ruas do Porto tinha a curadoria de Miguel Januário, do ±maismenos± – uma das referências nacionais de 3 Pontinhos, a par de Vhils e Hazul. Num painel comunitário com mais de três mil azulejos, entre a Rua da Madeira e a estação de São Bento, Luís colocou, na altura, três mosaicos. E um deles tinha já um coração.
Depois disso, integrou o colectivo Arte sem Dono – onde se juntou a um psicólogo, uma farmacêutica e um reformado –, integrou a série “tugas”, com a qual homenageavam vários portugueses, mais ou menos conhecidos, espalhou a palavra Porto com uma caveira a substituir o primeiro “o”, fez sorrir muita gente com uma caricatura de Cavaco Silva onde o ex-presidente da República aparecia com um crachá a dizer “Soares é fixe”, provocou com uma imagem de Quim Barreiros junto à frase “God save the king”, pôs Rui Moreira a passear com uma malinha de turista numa Ribeira “Trolleywood”.
Tudo com técnicas diversas. “Gosto muito de variar o suporte. Já fiz esculturas, azulejos, cartazes, instalações”, exemplificou. Ao longo dos últimos anos foi frequentando também os mais diversos cursos. Mas a aprendizagem, diz, veio sobretudo do convívio com os artistas na Geraldes da Silva. Da experiência. Da tentativa e erro.
Não há uma orientação política na mensagem. Mesmo porque Luís de Carvalho é um “agnóstico político” e só vai às urnas em alturas de referendos. “O homem é corruptível demais para ser político. No futuro vamos ter de inventar algo que se auto-regule, que não seja o homem.”
Com a garantia de o trabalho predilecto de Luís ser sempre “o que virá”, levanta o véu da sua próxima ideia, já a ganhar forma no computador, onde inicia quase sempre o processo de criação. Inspirado no Tumblr Desapareceu Artista, uma série de cartazes provocadores e com um lado humorístico colados na cidade, vai criar o “Apareceu artista”. Com a promessa de muito sarcasmo: “É um tipo culto, desempregado e entrega-se a quem cuidar dele”, diz. Uma forma de pôr nas paredes o tema da “precariedade na área da cultura”. Nas ruas da cidade, com esse tema e depois outros, continuará a espalhar arte. Porque haverá sempre algo para mudar.