Não deixem nada por dizer

Façam o mesmo a quem amam, enquanto podem, enquanto há tempo, e extravasem o amor, generosamente. Nada dura para sempre, nem vocês.

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A frase não é minha, mas é, é nossa, de todos, do nosso saudoso António Feio para todos. Não deixem nada por dizer, nada por fazer, não estamos aqui para sempre, pensamos estar, mas eu não estou e tu também não, daqui por um dia, daqui por dez anos, quem sabe, mas por certo ninguém, nem nenhum de nós, daqui por 100 anos.

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A frase não é minha, mas é, é nossa, de todos, do nosso saudoso António Feio para todos. Não deixem nada por dizer, nada por fazer, não estamos aqui para sempre, pensamos estar, mas eu não estou e tu também não, daqui por um dia, daqui por dez anos, quem sabe, mas por certo ninguém, nem nenhum de nós, daqui por 100 anos.

Mas falar é fácil, António, e dizer amor soa mal, dizer dor custa, e a verdade também. E por isso não dizemos, não falamos, guardamos cá dentro as verdades e sentimentos e continuamos mais um dia, mais um dia, até não haver mais tempo nem alguém a quem dizer tudo o que nos corre na alma. 

Não nos queremos nus, zangados, apaixonados, fugimos ao confronto como o diabo da cruz. Por uma questão de defesa, autopreservação, sobrevivência, instinto, cheira a fogo e cheira a medo e por isso fugimos e guardamos tudo só para nós que mais ninguém nos ouve. Até ser tarde demais.

Nas últimas semanas perdemos figuras ímpares do Portugal contemporâneo. Perdemos as palavras de Agustina, a liberdade de Ruben de Carvalho, a combatividade de Isaura Borges Coelho. Nunca, antes do fim destas vidas, ouvi ou vi eu a celebração de cada um destes três percursos como tenho ouvido e lido entre telejornais e jornais agora que já nenhum, nem a Agustina, o Ruben ou a Isaura, está entre nós. Já não podem ver, já não podem ouvir, já não podem ler nem agradecer os elogios, os discursos, o amor, a saudade, a falta que fazem quando sempre fizeram mas ninguém lhos disse. Agora que já cá não estão, de pouco vale terem sido os melhores entre os melhores se nunca ninguém lho disse.

Ora, eu disse tudo. Disse tudo ao meu avô. E não deixei nada por dizer ao meu avô. Foi o meu pai quem me avisou sobre o tempo a fugir por entre as mãos e já eu um jovem adulto. Escrevi então uma carta ao meu avô com a maior ternura que só um neto pode ter e pode dar. E agradeci-lhe. Pelos livros, pelas histórias em português, mas também em inglês e francês, pelos abraços e beijos do avô amigo, pelo tempo, sempre o tempo para o neto, a dedicação ao neto, as idas ao cinema, as idas ao teatro, a educação, a sorte de o ter, a viagem a Londres juntos quando terminei o Secundário, os conselhos sábios, o perdão sempre pronto a cada erro meu, o amor eterno sem pedir nada em troca e, no entanto, recebendo tudo em troca.

E pedi-lhe desculpa pela minha imaturidade, os acessos de mimo e as fúrias de uma criança, pelas notas baixas, principalmente a educação física e trabalhos manuais, e também a educação visual que no resto, nos livros, era bom a tudo. E prometi, por escrito e depois cara a cara, amá-lo para sempre.

Dizia o Lobo Antunes sobre como nesta terra passamos mais tempo mortos que vivos. Pragmaticamente, dizia o Lobo Antunes. Apesar desta saudade que fica para sempre, não dizia o Lobo Antunes, digo eu. E eu já conto os anos desde que o meu avô se decidiu a passar mais tempo até chegar a minha vez. E apesar de ter dito tudo, de lhe ter dito tudo, não passa um dia em que não queira dar quanto tenho e sou para poder abraçar o meu avô outra vez, ver o meu avô outra vez na sala de estar a folhear os livros de aventura e romance, livros esses prontamente de lado à chegada do neto de braços abertos para o avô amigo.

Nessa noite em que disse tudo e não deixei nada por dizer limpei as lágrimas, as minhas e as do meu avô. Façam o mesmo a quem amam, enquanto podem, enquanto há tempo, e extravasem o amor, generosamente. Nada dura para sempre, nem vocês.