Estender a mão a um refugiado
Por todas as razões, os refugiados já não são assunto longínquo. São pessoas próximas a quem nos coube ajudar fraternalmente. Mas não o fizemos.
Hoje, 20 de junho, devemos fazer mais do que assinalar o Dia Mundial do Refugiado. Devemos celebrar a coragem gigantesca destas pessoas, que diante de um conflito bélico ou político são obrigadas a fugir com as suas famílias, a fugir pela vida, a sua e a dos seus. Devemos lembrar a sorte que temos, por vivermos num país de relativa paz e segurança – um direito tão básico em teoria, mas que é um privilégio tão grande na prática.
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Hoje, 20 de junho, devemos fazer mais do que assinalar o Dia Mundial do Refugiado. Devemos celebrar a coragem gigantesca destas pessoas, que diante de um conflito bélico ou político são obrigadas a fugir com as suas famílias, a fugir pela vida, a sua e a dos seus. Devemos lembrar a sorte que temos, por vivermos num país de relativa paz e segurança – um direito tão básico em teoria, mas que é um privilégio tão grande na prática.
O primeiro contacto que tive com refugiados foi em Angola, em 2004. A guerra civil tinha acabado dois anos antes. Em Lwena, onde estava, havia um campo de refugiados. Tecnicamente eram retornados, por regressarem ao seu país, tendo entrado por Luau, junto à fronteira com a Zâmbia.
Traziam consigo apenas alguns haveres, todos os que tinham. A roupa no corpo, um saco com mais alguma. Uma cesta com galinhas e alguns ovos. Era tudo. Era nada.
A trabalhar com elas, aprendi das mais valiosas lições da vida. Aprendi sobre a gratidão, em absoluto, pela vida só porque se respira. Aprendi de um idoso o que é o perdão, o mais puro, ao perguntar-lhe se não sentia rancor dos senhores da guerra que o expulsaram da sua vida. Respondeu-me com a questão: o que significava rancor?
Por lá, também conheci uma criança – o Pietà – dos seus quatro ou cinco anos de idade. Falava Chokwé, o dialeto da sua família, e inglês, aquilo que ouvia falar na Zâmbia. Poucas semanas depois de ter chegado ao campo de Lwena, falou comigo num perfeito português. Aprendeu, assim, só de nos ouvir falar. A inteligência daquele miúdo.
Muitas vezes perco-me a pensar nele. Onde estará? Quem seria e onde teria chegado se tivesse nascido num sítio diferente? Se pudesse ter ido à escola e se não soubesse o que é passar fome, tenho a certeza de que se teria graduado com as melhores notas da universidade. Tenho a certeza que daria ao mundo na exata medida oposta do que o mundo não lhe deu a ele.
Infelizmente, a realidade dos refugiados não tem melhorado. O ACNUR divulgou, ontem, que existem mais de 70 milhões. Se não agirmos pela paz e pelo ambiente, a realidade futura não melhorará.
Por todas as razões, os refugiados já não são assunto longínquo. São pessoas próximas a quem nos coube ajudar fraternalmente. Mas não o fizemos.
O problema tem ainda outra face: hoje, ser refugiado é sinónimo de ser considerado pessoa indigente ou terrorista. Os termos dos que lhes apontam o covarde dedo é muito semelhante ao discurso nazi do século passado, ainda que as palavras de agora sejam mais rebuscadas e o discurso mais polido.
Não só os refugiados são discriminados, como quem ajuda passou a ser um alvo para as autoridades. Um relatório recente da Amnistia Internacional dá conta de defensores dos direitos humanos perseguidos, intimidados e até agredidos violentamente pela polícia por oferecerem ajuda humanitária e outro tipo de apoio a migrantes, requerentes de asilo e refugiados, na zona de Calais e Grande-Synthe, em França. Já foram documentados mais de 700 ataques.
Na Grécia, surgiram vários casos de justiça. Um deles de uma jovem portuguesa voluntária ao serviço de refugiados. Agora, a imprensa tem centrado atenções no caso de Miguel Duarte e dos outros nove tripulantes do Iuventa. Ainda não foram formalmente acusados, mas podem responder por auxílio à imigração ilegal, em Itália.
Qualquer que seja a decisão de um possível julgamento, o artigo 98.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar é claro: “Todo o Estado deverá exigir do capitão de um navio (...) que preste assistência a qualquer pessoa encontrada no mar em perigo de desaparecer.” A Itália e Portugal estão entre os Estados que ratificaram esta convenção.
Espero que o procurador italiano de Trapani investigue tudo a fundo e que lá descubra bondade, a vida ao serviço dos outros e distribua um pouco disso tudo ao ministro Salvini. É verdade: a crise dos refugiados tornou-se numa crise de humanidade na Europa, que nem sequer é das regiões do mundo com mais refugiados.
Mas há esperança. Os defensores de direitos humanos perseguidos, insultados, acusados em tribunal ou agredidos provam isso ao não mostrarem arrependimento sobre aquilo que fizeram e que foi tão simples quanto estender a mão a quem mais precisava. O seu compromisso com a justiça deve inspirar-nos a fazer o mesmo.
Aos voluntários e a todos os Pietàs – génios de quem este mundo tanto tinha a receber, mas teima em fechar a porta –, obrigado por serem faróis de esperança.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico