Feminismo? Sem medo. Sim, sim e sim
Uma menina não tem de ser recatada, um menino não tem de ser confiante, poderão sê-lo, se assim o quiserem. Falamos de dignidade humana, não é de igualdade de género.
Continuamos a falar da pertinência do feminismo e das lutas pela equidade. Nos últimos tempos, e seguindo o rasto de algumas conquistas (relevantes e destacáveis), tem-se criado a perigosa noção de estabilidade e resolução da perseguição e subjugação que colocou muitas mulheres, homens, pessoas, na escuridão de um mundo que nunca lhes pertenceu.
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Continuamos a falar da pertinência do feminismo e das lutas pela equidade. Nos últimos tempos, e seguindo o rasto de algumas conquistas (relevantes e destacáveis), tem-se criado a perigosa noção de estabilidade e resolução da perseguição e subjugação que colocou muitas mulheres, homens, pessoas, na escuridão de um mundo que nunca lhes pertenceu.
Digo perigosa e repetiria essa palavra bem alto caso vos falasse nos olhos, isto porque nenhuma conquista deve ser dada como irrevogável e não faltarão oportunidades de retrocessos impulsivo-básicos para que, em momentos de crise social, ou depleção de juízo crítico, se coloquem questões inválidas, arquivadas e bafientas, em cima de uma mesa — de onde nunca saíram. Por isso estes temas activam-me e deixam-me com pouca paciência, quando em discussões ouço um “lá estás tu com feminismos” ou mesmo quando surgem cuspidelas de ódio enquanto me relatam “vocês já são tratadas como iguais”.
Pois muito bem, aqui ninguém quer ser igual a ninguém, a diversidade é o objectivo e tal e coisa. As noções de comportamento exclusivo e estandardizado são erradas. Senão vejamos: a genética, toda a questão do neurodesenvolvimento e toda a modulação hormonal (a natureza) a que estamos sujeitos, não determina que sejamos a princesa da Cornualha ou a melhor jogadora de futebol de salão, isto é, não determina os complexos padrões de comportamento que nos definem em termos identitários. O mais comum, em termos estatísticos, pode ser mais ou menos testosterona, mais ou menos pragmatismo, mais ou menos docilidade, mas nada disso pode sequer justificar que seja barrado a mulheres ou homens a vontade de ser o que bem sentirem que são.
O sentimento de si e a capacidade de pensar a própria consciência dá-nos esta liberdade. Os impulsos alimentam a nossa corporalidade, os afectos e os sentimentos animam-nos e a vontade pressupõe uma certa reflexibilidade, de modo a que se tomem decisões, com consciência das possibilidades. Então, em que livro de pedra está escrito que essa vontade está condicionada por um estatuto, por um rótulo ou conserva social? A ordem social fica ameaçada por um homem que chora ou por uma mulher de barba? Não fica. Só ficam os medos de desvario, de holocausto — medos alimentados pelo escape da rigidez em que estamos habituados a pensar. Pois, mais vos digo: existirá sempre quem sinta amor, ternura e apreço por todas as possíveis diversidades. E isso é que importa — saber que pertencemos; algo muito distante da noção de sermos tolerados (e, ainda assim, com muitas condições, vá lá).
A educação deve ser o mais limpa possível, clara, aberta, sem barreiras pré-determinadas pela cor da pele, pelo tamanho dos olhos, pela presença ou ausência de mamas ou por mais ou menos pêlo. A educação deve deixar que cada um ponha os olhos no seu farol, que cada um se identifique e vá fazendo as suas escolhas. Uma menina não tem de ser recatada, um menino não tem de ser confiante, poderão sê-lo, se assim o quiserem, ou se isso for a sua tranquilidade, mas deverão crescer com a noção que nada lhes é bloqueado apenas por não serem socialmente vistos da mesma forma como eles próprios se vêem no seu íntimo.
Falamos de dignidade humana, não é de igualdade de género. É normal, em termos estatísticos e culturais, que nos vamos colando a estereótipos. É organizador e eles estão lá porque em algum momento nos poderão ter sido favoráveis enquanto espécie. Mas é um esforço individual repensarmos estes mesmos estereótipos, repensar o nosso comportamento e a forma como lidamos uns com os outros. Se, em tempos, já nos sentimos barrados e barradas, não temos de perpetuar essa emoção e condicionamento. Se, em tempos, já nos disseram que precisamos de um homem para cuidar de nós, podemos capacitar quem cresce. Se um dia já nos disseram que para ser homem temos de estar “sempre prontos” e firmes, podemos validar a dor e a tristeza. Se um dia nos sentimos oprimidos e oprimidas, estará em nós a voz desses sistemas de opressão.
Nenhuma conquista é para sempre e, felizmente, podemos dar o tempo geológico necessário para que outros estereótipos (que não estes) nos sirvam melhor. Eu tenho orgulho na mulher, no homem, no trans, no queer, na criança, no velho, em todos os tons de pele e maneiras de sentir. Tenho orgulho na liberdade, sem coerção e na responsabilidade de podermos fazer melhor. Por isso não, não chega de feminismos ou de paradigmas de libertação. Desoprimam-se!