Constâncio: entre a lei e os serviços, “não se podia fazer nada”

Vítor Constâncio viu o que se estava a passar no BCP – com vários accionistas a crescer sustentados em créditos da Caixa –, ficou preocupado, se fosse gestor nem tinha dado aqueles créditos, mas a lei não o deixou actuar e confiou sempre na avaliação dos serviços do Banco de Portugal.

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Constâncio esteve seis horas a responder às perguntas dos deputados LUSA/MANUEL DE ALMEIDA

O regresso de Vítor Constâncio ao Parlamento, esta terça-feira, para explicar melhor a sua actuação durante a guerra accionista no BCP que gerou perdas avultadas nas contas da Caixa, com José Berardo em destaque –,​ começou com uma extensa resposta às notícias do PÚBLICO sobre o papel que o ex-governador teve na subida da participação de Berardo no BCP com um crédito de 350 milhões de euros da Caixa. E acabou com o ex-governador a contradizer o investidor acerca dos encontros que ambos tiveram durante esse processo. Pelo meio, Constâncio desvalorizou o seu papel em todo o caso, justificando as suas limitações com a lei, a sua falta de informações com a responsabilidade dos serviços do supervisor e os créditos ruinosos com a actuação da gestão do banco público. Mas confessou: “Se eu tivesse estado na Caixa, porventura não faria essa operação” de crédito a Berardo.

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O regresso de Vítor Constâncio ao Parlamento, esta terça-feira, para explicar melhor a sua actuação durante a guerra accionista no BCP que gerou perdas avultadas nas contas da Caixa, com José Berardo em destaque –,​ começou com uma extensa resposta às notícias do PÚBLICO sobre o papel que o ex-governador teve na subida da participação de Berardo no BCP com um crédito de 350 milhões de euros da Caixa. E acabou com o ex-governador a contradizer o investidor acerca dos encontros que ambos tiveram durante esse processo. Pelo meio, Constâncio desvalorizou o seu papel em todo o caso, justificando as suas limitações com a lei, a sua falta de informações com a responsabilidade dos serviços do supervisor e os créditos ruinosos com a actuação da gestão do banco público. Mas confessou: “Se eu tivesse estado na Caixa, porventura não faria essa operação” de crédito a Berardo.

Na manhã em que o seu antigo colega do Banco Central Europeu, Mario Draghi, voltava a surpreender o mundo ao admitir, em Sintra, que está disponível para persistir nos estímulos à economia da zona euro, Vítor Constâncio mostrou-se igualmente persistente na justificação de que foi a lei que o impediu de travar a linha de crédito da Caixa a Berardo para comprar acções do BCP.

“O governador não pode ir além da lei, não pode violar a lei. É a lei. Não tem poderes”, repetiu dezenas de vezes, oscilando entre um tom calmo típico do professor que foi, e a voz mais agitada de um parlamentar que também foi. A sua versão assenta em três momentos. O crédito foi assinado entre a Caixa e Berardo em Maio. “O supervisor não tem poderes legais para impedir uma operação comercial de créditos entre as partes.” Os serviços receberam-no em Junho e avaliaram positivamente a idoneidade, a solidez financeira e a origem legal dos fundos da Fundação José Berardo, para o BdP tomar uma posição acerca da subida de participação no BCP com esse crédito. E os serviços fizeram uma “proposta inequívoca favorável de que não havia razões legais para travar esse pedido”.

E o terceiro momento foi a formalização no conselho de administração (decidido a 21 de Agosto, quando esteve ausente, e formalizado a 28 de Agosto, quando esteve presente). Sobre a sua actuação neste momento, noticiada pelo PÚBLICO esta terça-feira, Constâncio resumiu: “Participar numa reunião em que se aprova uma acta não é o mesmo que deliberar sobre uma decisão.” Ainda assim, relembrou que não se demarca “da decisão tomada, baseada numa proposta inequívoca dos serviços com base na lei”.

Quando confrontado por Duarte Marques, do PSD, sobre o que aconteceria se tivesse dito que aquela operação não podia avançar, Constâncio diz que “não sabe”. Só podia fazê-lo “se fosse além da lei, porque a lei não permitiria fazer isso”. E reconheceria, mais tarde, sobre este tema que teve de cumprir a lei “por muito que nos custe o que veio a acontecer posteriormente. É claro que nos custa, muito”.

“Alguma preocupação”

É entre as amarras da lei e o julgamento técnico dos serviços em que sempre confiou que Constâncio sustenta a sua tese de que não podia opor-se ao que Berardo precisava para subir a participação no BCP com base num crédito sem garantias reais aprovado na Caixa. Quando confrontado com o ponto 2 do artigo 118 do RGICSF (a lei que regula a banca), que prevê que quando os bancos não tiverem uma gestão sã e prudente o BdP pode actuar, Constâncio explica que esse artigo só permite agir antes das operações estarem fechadas. “Como expliquei, esse contrato foi assinado com valor definitivo em Maio. O BdP não teve qualquer conhecimento nessa altura, nem tinha que ter. O artigo existe para acautelar se, por razões fortuitas, o BdP tiver conhecimento de um projecto de operação”, explicou, para acrescentar que “esse artigo nunca foi usado” e provocando a resposta do deputado do PCP, Duarte Alves: “O senhor acaba de nos dar uma interpretação muito eloquente da inutilidade da supervisão.”

Mas é perante o cenário descrito por Mariana Mortágua de um movimento gradual desde Maio de accionistas relevantes (Teixeira Duarte, Manuel Fino, Berardo, entre outros) que estavam a comprar acções do BCP com créditos da Caixa e a passar sucessivamente na chancela do BdP –​ que Constâncio acaba por reconhecer: “É claro que sabia de tudo o que acabou de dizer no contexto de decisões sobre participações qualificadas.”

A deputada do Bloco insiste: “Já sabia, quando aprovou a operação de Berardo, que a CGD tinha mais ou menos 8% do BCP tomado em penhor?” Constâncio: “Não fiz a soma, seguramente. Estas operações eram normais no sistema”, disse, recorrendo mais uma vez aos limites da lei para interferir, mas admitindo que “tinha consciência da consequência dessas operações”. E esse movimento não o preocupou? “Na época, era motivo de alguma preocupação, mas não se podia fazer nada”, atirou, voltando a recorrer aos técnicos como justificação legal para a luz verde que ia sendo dada a todas estas operações, culminando nos 350 milhões de José Berardo, já no final de Agosto.

Mais adiante repetiria, sobre a corrida às armas pelos accionistas do BCP, que “havia preocupação, mas simplesmente foi tudo muito rápido”. E desabafou: “Essa matéria era legal. Mudem a lei. O supervisor tem de actuar no respeito da lei.” Para mais tarde avançar uma nova linha de defesa da sua conduta: “Estas acções [mostram que o BdP] não interveio no âmbito dessa luta. Porque se tivéssemos intervindo, estaríamos a tomar partido” nessa guerra, que opunha Jardim Gonçalves e Filipe Pinhal ao grupo de accionistas liderado por José Berardo.

Durante essa luta, aliás, Constâncio confirmou que se reuniu com Berardo, tal como noticiou o PÚBLICO esta terça-feira, mas apenas uma vez. E, descrevendo a reunião como “bizarra e divertida”, explicou que tinham começado a falar sobre as críticas que o investidor teria feito numa televisão ao BdP. “Ele atrapalhou-se, percebeu que a reunião não era só comigo” e saiu. No final da audição, seis horas depois e com uma pausa para almoço, Constâncio foi confrontado com a revelação de Berardo, também no Parlamento, de que se tinha reunido a sós com o então governador e que a conversa tinha ficado “entre quatro paredes”.

“Tudo isso é mentira”, reclamou Constâncio, retomando a linha de argumentação com que tinha começado a audição, às 9h30 da manhã, sobre as notícias do PÚBLICO. Fonte oficial de Berardo, umas horas depois, viria dizer à agência Lusa que estava “incrédulo com a falta de memória” de Constâncio, que a meio da audição havia precisamente sublinhado: “Não sou eu nem a minha memória que está aqui a ser julgada.” com Liliana Valente