E se discutíssemos o SNS a sério?
Deixar agravar-se a degradação do SNS apenas conduzirá ao regresso a uma segregação classista do tipo da que existia na Saúde no tempo do salazarismo.
Agora que a tentativa de aprovar uma nova Lei de Bases da Saúde ameaça ruir, vítima de aproveitamentos eleitoralistas e enquistamentos em instrumentais e oportunistas pressupostos ideológicos, é altura de os partidos se prepararem para, na próxima legislatura, discutirem a sério o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Tinha razão o Presidente da República quando defendeu que este debate se fizesse longe de calendários eleitorais.
A Lei de Bases da Saúde aprovada em 1994, pelo II Governo de Cavaco Silva, abriu a porta à situação presente, mesmo que conscientemente os responsáveis do PSD de então não tivessem noção do que aí vinha. Com os anos, a lógica do sistema e a situação de protecção do Estado aos operadores privados na Saúde, que é garantida nessa lei, serviu, entre outras coisas, também de plataforma de restabelecimento no tecido empresarial nacional de duas famílias dominantes na economia portuguesa durante o salazarismo. Fizeram-no então num negócio que dava os primeiros passos em Portugal. A família Mello, que ainda mantém o grupo com o nome do então império, a CUF. E a família Espírito Santo, criadora do grupo Luz Saúde, que passou a ser propriedade de empresários chineses, aquando da falência do Grupo Espírito Santo.
Uma lei de bases com 25 anos não tem obrigatoriamente de ser revista, mas é sensato fazê-lo perante as insuficiências do SNS, que não são só orçamentais e financeiras. Os problemas não têm a ver apenas com falta de investimento. Muito do que corre mal no SNS deve-se às lógicas e às opções de gestão. A começar por uma total roda livre em relação ao recurso a serviços privados para complementar as falhas do SNS.
Também é necessário que seja assumido pela sociedade e, sobretudo, pelos agentes político-partidários que é preciso pôr fim a uma lógica de nomeações de gestores e administradores e chefes em estilo de comissário político, tendo em conta o cartão partidário e/ou as amizades em sistema de proximidade tribal.
Era desejável que os partidos fizessem esta discussão de forma mais pragmática em relação ao que é o real interesse das populações e menos com a preocupação exclusiva (ainda que o disfarcem) de marcarem terreno político-partidário com fins eleitorais.
Discutir o SNS não é só saber se deve ser mais ou menos assegurado directamente pelo Estado. É certo que é vital saber qual o peso do Estado, mas há muito mais a debater. Deve o Estado administrar em exclusivo, ainda que contrate com privados o assegurar da gestão de sectores específicos do sistema? Devem as parcerias público-privadas acabar ou ser mantidas como recurso em situações e zonas do país em que o Estado não tem capacidade de, só por si, responder às necessidades das populações?
Mas há mais: qual o papel dos privados na Saúde? Deve manter-se total liberdade permitida pela lei de bases aprovada há 25 anos e a obrigação do Estado de fomentar a saúde privada? Qual o respeito pela ética que existe na exploração de hospitais privados? Será normal que em tratamentos oncológicos ganhem dinheiro com os doentes da ADSE ou de seguros de saúde privados e que, quando os plafonds de limitação de gastos dos doentes terminam, os atirem para os hospitais de Estado?
Por que razão os hospitais privados, quando as situações são verdadeiramente graves, fazem muitas vezes desaguar os seus doentes nos hospitais públicos, sobretudo em algumas operações delicadas, mais especializadas ou de risco? Por que razão os hospitais privados não são devidamente fiscalizados? E os serviços públicos de Saúde são-no também? O recurso a métodos de diagnóstico (análises e exames múltiplos) no Estado está rigorosamente controlado?
Aconselhável é também que se debata, sem preconceito ideológico, receio ou pudor, como deve ser garantido o financiamento do SNS. Deve manter-se como obrigação exclusiva do Orçamento do Estado? Devem as taxas moderadoras permanecer? Se sim, devem ser progressivas, de acordo com os rendimentos? Deveria ser criada uma taxa de financiamento do SNS a pagar pelos utentes, à semelhança do que existe já na ADSE e no sector da Segurança Social? Deve esta taxa ser progressiva, de acordo com os rendimentos?
O SNS é um dos grandes adquiridos da democracia. Era bom que a sua degradação fosse travada e fosse assumida como prioridade a sua dinamização em novos termos, que servissem melhor e mais a população. Deixar agravar-se a sua degradação apenas conduzirá ao regresso a uma segregação classista do tipo da que existia na Saúde no tempo do salazarismo.
Os operadores privados da saúde servem os ricos, os remediados, hoje com acesso a seguros de saúde, e os funcionários públicos com ADSE (a razão da sua criação foi garantir aos trabalhadores do Estado acesso à medicina privada). Para os pobres ou remediados, sem seguros de saúde e sem ADSE, ficam, como no salazarismo, os hospitais públicos cada vez mais degradados.
P.S. – A Semana Política regressa a 6 de Julho.
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Agora que a tentativa de aprovar uma nova Lei de Bases da Saúde ameaça ruir, vítima de aproveitamentos eleitoralistas e enquistamentos em instrumentais e oportunistas pressupostos ideológicos, é altura de os partidos se prepararem para, na próxima legislatura, discutirem a sério o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Tinha razão o Presidente da República quando defendeu que este debate se fizesse longe de calendários eleitorais.
A Lei de Bases da Saúde aprovada em 1994, pelo II Governo de Cavaco Silva, abriu a porta à situação presente, mesmo que conscientemente os responsáveis do PSD de então não tivessem noção do que aí vinha. Com os anos, a lógica do sistema e a situação de protecção do Estado aos operadores privados na Saúde, que é garantida nessa lei, serviu, entre outras coisas, também de plataforma de restabelecimento no tecido empresarial nacional de duas famílias dominantes na economia portuguesa durante o salazarismo. Fizeram-no então num negócio que dava os primeiros passos em Portugal. A família Mello, que ainda mantém o grupo com o nome do então império, a CUF. E a família Espírito Santo, criadora do grupo Luz Saúde, que passou a ser propriedade de empresários chineses, aquando da falência do Grupo Espírito Santo.
Uma lei de bases com 25 anos não tem obrigatoriamente de ser revista, mas é sensato fazê-lo perante as insuficiências do SNS, que não são só orçamentais e financeiras. Os problemas não têm a ver apenas com falta de investimento. Muito do que corre mal no SNS deve-se às lógicas e às opções de gestão. A começar por uma total roda livre em relação ao recurso a serviços privados para complementar as falhas do SNS.
Também é necessário que seja assumido pela sociedade e, sobretudo, pelos agentes político-partidários que é preciso pôr fim a uma lógica de nomeações de gestores e administradores e chefes em estilo de comissário político, tendo em conta o cartão partidário e/ou as amizades em sistema de proximidade tribal.
Era desejável que os partidos fizessem esta discussão de forma mais pragmática em relação ao que é o real interesse das populações e menos com a preocupação exclusiva (ainda que o disfarcem) de marcarem terreno político-partidário com fins eleitorais.
Discutir o SNS não é só saber se deve ser mais ou menos assegurado directamente pelo Estado. É certo que é vital saber qual o peso do Estado, mas há muito mais a debater. Deve o Estado administrar em exclusivo, ainda que contrate com privados o assegurar da gestão de sectores específicos do sistema? Devem as parcerias público-privadas acabar ou ser mantidas como recurso em situações e zonas do país em que o Estado não tem capacidade de, só por si, responder às necessidades das populações?
Mas há mais: qual o papel dos privados na Saúde? Deve manter-se total liberdade permitida pela lei de bases aprovada há 25 anos e a obrigação do Estado de fomentar a saúde privada? Qual o respeito pela ética que existe na exploração de hospitais privados? Será normal que em tratamentos oncológicos ganhem dinheiro com os doentes da ADSE ou de seguros de saúde privados e que, quando os plafonds de limitação de gastos dos doentes terminam, os atirem para os hospitais de Estado?
Por que razão os hospitais privados, quando as situações são verdadeiramente graves, fazem muitas vezes desaguar os seus doentes nos hospitais públicos, sobretudo em algumas operações delicadas, mais especializadas ou de risco? Por que razão os hospitais privados não são devidamente fiscalizados? E os serviços públicos de Saúde são-no também? O recurso a métodos de diagnóstico (análises e exames múltiplos) no Estado está rigorosamente controlado?
Aconselhável é também que se debata, sem preconceito ideológico, receio ou pudor, como deve ser garantido o financiamento do SNS. Deve manter-se como obrigação exclusiva do Orçamento do Estado? Devem as taxas moderadoras permanecer? Se sim, devem ser progressivas, de acordo com os rendimentos? Deveria ser criada uma taxa de financiamento do SNS a pagar pelos utentes, à semelhança do que existe já na ADSE e no sector da Segurança Social? Deve esta taxa ser progressiva, de acordo com os rendimentos?
O SNS é um dos grandes adquiridos da democracia. Era bom que a sua degradação fosse travada e fosse assumida como prioridade a sua dinamização em novos termos, que servissem melhor e mais a população. Deixar agravar-se a sua degradação apenas conduzirá ao regresso a uma segregação classista do tipo da que existia na Saúde no tempo do salazarismo.
Os operadores privados da saúde servem os ricos, os remediados, hoje com acesso a seguros de saúde, e os funcionários públicos com ADSE (a razão da sua criação foi garantir aos trabalhadores do Estado acesso à medicina privada). Para os pobres ou remediados, sem seguros de saúde e sem ADSE, ficam, como no salazarismo, os hospitais públicos cada vez mais degradados.
P.S. – A Semana Política regressa a 6 de Julho.