“Quanto tempo falta para o futuro”
Uma fábula distópica que nos dá a ver um tempo cada vez mais punitivo e sufocante.
As notícias que nos chegam, em cada dia que passa, fazem referência, com macabra insistência, a um mundo em colapso: saturados de informação, familiarizamo-nos rapidamente com ameaças nucleares, catástrofes naturais, brutais alterações climáticas, confrontos, manifestações, actos de extremistas, invasão da privacidade de cada um, corrupção e crime. Quem lê jornais ou vê televisão não escapa a esta voraz onda de dramatismo e mantém-se num estado de alerta e de medo permanentes. A única forma de sobreviver passa pela habituação, pela banalização do mal.
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As notícias que nos chegam, em cada dia que passa, fazem referência, com macabra insistência, a um mundo em colapso: saturados de informação, familiarizamo-nos rapidamente com ameaças nucleares, catástrofes naturais, brutais alterações climáticas, confrontos, manifestações, actos de extremistas, invasão da privacidade de cada um, corrupção e crime. Quem lê jornais ou vê televisão não escapa a esta voraz onda de dramatismo e mantém-se num estado de alerta e de medo permanentes. A única forma de sobreviver passa pela habituação, pela banalização do mal.
Vivemos uma contradição flagrante: por um lado as condições de vida melhoraram, numa significativa parcela do mundo. Existem mais curas para doenças, menos fome, melhor habitação, mais capacidade de consumo; nos países onde ainda se defende a democracia, existem leis que, pelo menos em teoria, defendem a integridade do indivíduo e, em geral, os direitos humanos.
O preço a pagar por esta qualidade vida, dita “civilizada” tem de ser, obviamente, elevado. “Não há almoços grátis”, diz o velho e cínico ditado. Nenhuma dádiva dos deuses, dos políticos, dos poderosos pode ser, apenas, um presente desinteressado. Até mesmo os recursos naturais que, em princípio, deveriam ser gratuitos e à disposição de todos os seres vivos, surgem como bens taxáveis, pontual e fatalmente, nas contas, ao fim do mês, em qualquer casa. E a verdade é que ninguém se mostra admirado por pagar a água — da torneira ou engarrafada — a energia que consumimos, o ar que respiramos. Existe um preço para tudo que o cidadão comum consome, pago sem se saber bem porquê. O equilíbrio entre aquilo que nos é facultado pela natureza e a apropriação corporativa desses bens — tendo em vista o lucro, obviamente — está, há muito, desfeito, esfacelado, corrompido.
Para além disso, somos todos vigiados, em permanência. A nossa identidade é controlada, as nossas vidas, os nossos passos, as nossas actividades, até as nossas emoções são registadas algures, num espaço de armazenamento de dados virtual, sobre o qual não possuímos qualquer tipo de controlo.
Esta longa introdução tem como propósito contextualizar os temas abordados por Joana Bértholo no seu novo romance Ecologia, uma fábula distópica que nos dá a ver um tempo cada vez mais punitivo e sufocante. Com este título irónico, que remete para essa ciência que estuda as relações entre os seres vivos e o meio ambiente, e cujos propósitos, maioritariamente utópicos, são sistematicamente sabotados pelos próprios seres humanos, a autora constrói uma história de contornos alarmantes, passada num futuro demasiado próximo, para nosso conforto. E, neste caso, tudo se concentra na linguagem, essa forma de contacto humano que aproxima, revela emoções, desmistifica, mas também engana e deturpa. As palavras, entidades que contêm uma riqueza incomensurável, passam a ser cobiçadas como um produto valioso e. evidentemente, apetecível para ser explorado e contabilizado.
É o que acontece quando Darla Walsh, uma muito jovem e sagaz executiva se lança na edificação de um império construído a partir da ideia de que é necessário normatizar o uso da linguagem. Através de sofisticados meios de vigilância permanente, todas as pessoas estão sujeitas a pagar montantes variados por essa forma de comunicação. Reminiscente do famoso “big brother” orwelliano, também aqui a vigilância se instala sub-repticia, mas eficazmente. Personagens como Carolina, a jornalista, que faz retiros de silêncio com esperança de superar a incomunicabilidade com Tápio, o fotógrafo de guerra que se desespera com a dificuldade em descrever o horror no chamado “teatro de operações”, onde ele se sente como um actor, ou ainda Carolina e Pablo, pais adoptivos de Candela, a menina que contraria tudo e todos com a sua obsessão pelas palavras, uma actividade perigosa e dispendiosa, compõem um núcleo de diversos seres que, de uma forma ou outra, tentam adaptar-se ao “novos tempos”. De notar que o pagamento pela linguagem vai-se inserindo no quotidiano e poucos são aqueles que contestam tal prática.
Qual a lição a tirar deste livro incómodo e brilhantemente estruturado? Que não temos a perceção do valor intrínseco de uma miríade de coisas? Que somos cobardes e frágeis perante a ganância dos mais aptos, financeira e tecnologicamente falando? Que nos conformamos e nos habituamos a muito do que que nos é imposto violentamente?
Joana Bértholo escreve um livro revolucionário que analisa, sob o disfarce do romance, ou seja, através de histórias de pessoas com vidas que nos parecem familiares e próximas, o caos em que vivemos. Darla, tal como uma antiga deusa ou uma sibila, aparece em todo o lado, numa mistura de orientadora benigna e de feroz controladora. Desde as banais “fake news” — aqui vive-se num tempo de pós-verdade — até ao descuidado discurso das redes sociais e à manipulação dos meios de informação, passando pela censura, que o ressurgimento e ascensão de certos governos totalitários deseja impor, tudo vai deslizando suavemente para uma “normalidade” inquietante.