Milhares voltam a ocupar Hong Kong para que não se torne mais uma cidade chinesa
Manifestantes ocuparam as zonas próximas da Assembleia Legislativa, que adiou o início do debate sobre a lei da extradição para a China. Mas os líderes locais mantêm-se firmes no desejo de aprovar o diploma.
Em Hong Kong, milhares de pessoas voltaram a ocupar parte da cidade, em protesto contra a polémica lei que abre a possibilidade de extradição de fugitivos para a China. A oposição popular é transversal e obrigou a Assembleia Legislativa a adiar o debate sobre o diploma. A aprovação da lei prepara-se para ser o maior desafio ao projecto de domínio crescente de Pequim sobre Hong Kong.
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Em Hong Kong, milhares de pessoas voltaram a ocupar parte da cidade, em protesto contra a polémica lei que abre a possibilidade de extradição de fugitivos para a China. A oposição popular é transversal e obrigou a Assembleia Legislativa a adiar o debate sobre o diploma. A aprovação da lei prepara-se para ser o maior desafio ao projecto de domínio crescente de Pequim sobre Hong Kong.
Logo de manhã (madrugada em Portugal), dezenas de milhares de pessoas marchavam pela zona de Admiralty, onde está sedeada a Assembleia Legislativa, que se preparava para dar início ao debate da lei. Ao contrário do que aconteceu no domingo – em que o ambiente nas manifestações foi sobretudo pacífico –, desta vez a polícia tentou dispersar à força os manifestantes que ocupavam as ruas em torno da assembleia. Recorreram a canhões de água e a gás lacrimogéneo, mas milhares de pessoas continuaram nas ruas.
A atmosfera dos protestos desta quarta-feira lembrou a “Revolução dos Guarda-Chuvas”, a grande onda de contestação de 2014, quando milhares de pessoas, sobretudo estudantes de liceu e universitários, ocuparam durante meses eixos centrais da metrópole. Tal como há cinco anos, os manifestantes indicaram a intenção de quererem manter-se nas ruas durante muito tempo. Ao fim do dia, havia tendas montadas e os protestos continuaram noite dentro.
Os protestos deixaram a cidade quase em estado de sítio. Centenas de lojas foram obrigadas a encerrar, as organizações de estudantes e de pais convocaram boicotes às aulas e vários sindicatos estão a organizar greves.
Lei controversa
A jornada de protesto, que não tinha sido previamente autorizada, foi convocada por grupos que se opõem à intenção do governo local de aprovar uma lei que pode permitir a extradição de fugitivos para a China continental, o que, no limite, pode pôr em causa o trabalho de activistas políticos, jornalistas ou empresários perseguidos pelo regime chinês. A lei em causa destina-se a permitir que Hong Kong feche acordos de extradição com países para os quais essa possibilidade ainda não existe, incluindo a China continental.
As autoridades de Hong Kong dizem que se trata apenas de suprir uma “lacuna” no ordenamento jurídico do território e que o objectivo é impedir que a ilha se torne num “paraíso para criminosos internacionais”. O debate sobre a lei teve como ponto de partida o caso de um homem de Hong Kong que, no ano passado, assassinou a namorada durante uma viagem a Taiwan. De regresso a Hong Kong, foi detido, mas, por não poder ser extraditado para Taiwan, foi apenas julgado pelo uso indevido do cartão de crédito da sua vítima, e não por homicídio.
Numa entrevista emitida logo de manhã, a chefe do governo local, Carrie Lam, que conta com o apoio do Partido Comunista Chinês, garantiu que não vai desistir de aprovar a lei sobre a extradição. “Que esta questão é controversa, é indiscutível. Explicar [a lei] e a comunicação pode ajudar, mas podemos não conseguir eliminar completamente todas as preocupações, ansiedades e controvérsias”, afirmou.
O debate parlamentar que estava agendado foi adiado para uma data que não foi revelada. Acossado por grande parte da sociedade desde que a lei começou a ser discutida, o governo de Hong Kong já fez várias cedências para tentar esvaziar os protestos. Uma das alterações foi a de permitir que um pedido de extradição só possa ser feito para crimes puníveis no mínimo com uma pena de sete anos de prisão, em vez de um ano, como originalmente proposto.
As autoridades também recordam frequentemente que os pedidos de extradição só são válidos para crimes que existam nos ordenamentos jurídicos dos dois países, o que teoricamente deveria impedir a extradição de pessoas perseguidas por razões políticas na China, por exemplo. Porém, alguns juristas defendem que os riscos se mantêm, dado que um opositor do regime pode ser extraditado por crimes mais comuns, como fraude ou lavagem de dinheiro.
A oposição à lei da extradição estende-se a vários sectores da sociedade de Hong Kong, desde a comunidade jurídica a alguns líderes empresariais, passando pelos grupos de defesa dos direitos humanos e pelos partidos pró-democracia. “Foram feitas concessões, mas o que importa no fim de contas é a preocupação de que iremos ter pessoas enviadas para enfrentar a justiça num sistema opaco, rígido e que certamente não respeita os padrões que esperamos”, disse o presidente da Ordem dos Advogados de Hong Kong, Philip Dykes.
O poderoso sector financeiro, geralmente muito relutante em apoiar manifestações que ponham em causa a estabilidade da bolsa de Hong Kong, olha com grande preocupação para a possibilidade haver um acordo de extradição com a China. As garantias legais asseguradas pelo ordenamento jurídico de Hong Kong – que respeita o Estado de Direito, a separação de poderes, garante julgamentos justos, e estabilidade normativa – são um dos principais factores de atracção de investimento estrangeiro e a possibilidade de extradição para a China é vista como um perigo.
Autonomia limitada
A lei em discussão é interpretada num contexto em que Pequim está cada vez mais a limitar as liberdades e a autonomia de Hong Kong, com o objectivo de exercer a sua soberania de uma forma efectiva. Entre os opositores à lei da extradição persiste o receio de que a sua aprovação seja mais um passo para tornar Hong Kong em mais uma metrópole chinesa.
Depois da transferência da soberania britânica sobre Hong Kong para a China, em 1997, o território passou a ser administrado ao abrigo de um compromisso conhecido como “um país, dois sistemas”: apesar da soberania de Pequim, era permitido à ilha um “elevado nível de autonomia” para se auto-governar, assegurando várias direitos e garantias, como a liberdade de imprensa ou a existência de um ordenamento jurídico próprio durante 50 anos. Um arranjo idêntico foi feito em relação a Macau, que foi integrado na China em 1999.
Nos últimos anos, porém, Pequim tem tomado várias decisões que põem em causa a autonomia de Hong Kong. Pela primeira vez, um partido foi proibido e os seus deputados foram impedidos de tomar posse – a ordem foi dada directamente pelo Congresso do Povo, em Pequim, que tem a prerrogativa para interpretar a Lei Básica, a mini-constituição de Hong Kong. As detenções de livreiros que foram levados para a China também foram vistas como violações da autonomia de Hong Kong, onde apenas as autoridades locais podem actuar, tal como a condenação de vários líderes dos protestos de 2014, ou a recusa de renovação do visto para o correspondente do Financial Times. A aprovação de uma lei para combater “notícias tendenciosas” em Macau na segunda-feira também gerou receios semelhantes.
A liderança chinesa não esconde que a reunificação com Hong Kong é o único desfecho viável. Na primeira visita que fez ao território, no Verão de 2017, o Presidente chinês, Xi Jinping, disse que é “absolutamente inadmissível” questionar a soberania de Pequim sobre Hong Kong. Anos antes, o Livro Branco do Governo já deixava bem clara a sua interpretação do princípio “um país, dois sistemas”: “O elevado grau de autonomia de Hong Kong está sujeito ao nível de autorização dado pela liderança central.”