Niño de Elche: o flamenco em permanente mutação
Um dos mais livres recontextualizadores do flamenco apresenta esta terça-feira no Teatro da Trindade, em Lisboa, o álbum Colombiana. A colaboração com o líder dos Meridian Brothers é o mais recente capítulo de um caminho singular.
No último ano, a renovação do flamenco passou a ter um rosto muito claro e popular na figura de Rosalía. Mas, como sempre acontece, a explosão da cantaora é o sintoma de algo mais profundo que vem agitando as águas do género andaluz que mais se confunde com a identidade musical espanhola. Já no início do século, aliás, os Ojos de Brujo mexiam com o flamenco, juntando-lhe elementos de hip hop, rock ou música latino-americana, aplicando um carimbo de contemporaneidade a uma proposta que arriscava mais do que as anteriores (e algo insípidas) derivações pop ou meramente museológicas de um género que continua a ter por faróis vozes rasgadas como as de Camarón de la Isla ou Ninã de los Peines. Pouco depois de os Ojos de Brujo atingirem um sucesso além-fronteiras, com um forte discurso de crítica social, também Niño de Elche (nome artístico de Francisco Molina, nascido precisamente em Elche) começava a esboçar um singular retrato daquilo que o flamenco pode significar hoje.
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No último ano, a renovação do flamenco passou a ter um rosto muito claro e popular na figura de Rosalía. Mas, como sempre acontece, a explosão da cantaora é o sintoma de algo mais profundo que vem agitando as águas do género andaluz que mais se confunde com a identidade musical espanhola. Já no início do século, aliás, os Ojos de Brujo mexiam com o flamenco, juntando-lhe elementos de hip hop, rock ou música latino-americana, aplicando um carimbo de contemporaneidade a uma proposta que arriscava mais do que as anteriores (e algo insípidas) derivações pop ou meramente museológicas de um género que continua a ter por faróis vozes rasgadas como as de Camarón de la Isla ou Ninã de los Peines. Pouco depois de os Ojos de Brujo atingirem um sucesso além-fronteiras, com um forte discurso de crítica social, também Niño de Elche (nome artístico de Francisco Molina, nascido precisamente em Elche) começava a esboçar um singular retrato daquilo que o flamenco pode significar hoje.
Niño de Elche, que se apresenta esta terça-feira no Teatro da Trindade, Lisboa (às 21h, integrado no Ciclo Mundos), começou a cantar flamenco ainda em criança, seguindo o exemplo do pai e dos primos, que empurravam qualquer celebração de família para uma festa em torno de guitarras, palmas e cantorias. Mas esse modelo que ajudou Francisco a enveredar pelo flamenco na sua via mais tradicional, não tardou a ser desafiado à medida que a curiosidade do músico o colocava perante diferentes territórios artísticos – outras sonoridades, mas também artes performativas, literatura ou pintura (criou um espectáculo a partir de Francis Bacon, por exemplo). “Tem sido um processo e, na verdade, estou em processo contínuo”, confessa Niño de Elche ao PÚBLICO. “Mas um processo de deslocamento, porque estou sempre a mudar um pouco de lugar.”
Escavar raízes
Desde que se estreou em disco, Niño de Elche tem mudado constantemente de registo, razão pela qual acredita que só agora, ao fim de muitos anos – a sua estreia aconteceu em 2007, com Mis Primeros Llantos, seguindo-se outros cinco álbuns –, começa a ter o seu público. “Como mudo de estética a cada disco”, confessa, “a minha relação com os públicos é algo particular. Com determinado disco posso chegar a pessoas que não me acompanham na gravação seguinte. Só agora é que começam a misturar-se.”
“Agora” quer dizer a seguir a Antología del Cante Flamenco Heterodoxo (2018), álbum em que Niño acusava a “ortodoxia de ser uma ficção, um fantasma construído para perpetuar uma pseudo-identidade” e estraçalhava de tal maneira a ideia do que é o flamenco (com sugestão de música sacra, boleros, pop espacial e um sem-fim) que o diário El Mundo o descrevia como “o homem que bombardeou o flamenco” e obrigava a um profundo debate sobre o que se pode entender por raízes e aquilo que sobre elas se pode construir. “Interessa-me sobretudo o que significa activar essas raízes, o movimento de escavar”, diz-nos. “Mas a verdade é que nunca sabemos se chegámos suficientemente fundo.”
“Agora” quer também dizer Colombiana, disco lançado já este ano, numa colaboração musical com Éblis Alvarez, músico colombiano dos Meridian Brothers. E o título, antes de mais, remete para os cantes de ida y vuelta, subgénero do flamenco resultante do regresso a Espanha da emigração partida para a América Latina e que trouxe consigo transformações produzidas por músicas locais – reconvertidas em la rumba, la guajira ou la colombiana. “Quis pegar nesse estilo que existe no flamenco e desmistificá-lo, ampliá-lo e ligá-lo a temáticas que me interessa tratar, como a escravatura, o colonialismo, a violência, as drogas, as relações comerciais e os fluxos fronteiriços”, explica.
O resultado, uma inimaginável tangência entre o flamenco livre de Niño de Elche e os delírios febris dos projectos de Alvarez, é algo que só existe mesmo em Colombiana. É ouvir para crer.