Ceder a Marcelo, esquecer Arnaut
Na Saúde, dar mais tempo à lei atual e a estes abusos será a responsabilidade do PS e de António Costa.
Dei por mim a fazer contas ao ouvir o primeiro-ministro. Qual é o tempo de vida de uma Lei de Bases? É que um dos argumentos de António Costa no debate da Lei de Bases da Saúde (LBS) radica nesta pergunta quase filosófica. Há algum manual com resposta para isso, alguma regra dourada ou equação matemática? Que eu saiba, na democracia as regras são ditadas pelas pessoas e só elas definem o prazo de validade de qualquer lei. Dead man walking não se aplica a leis, pois não?
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Dei por mim a fazer contas ao ouvir o primeiro-ministro. Qual é o tempo de vida de uma Lei de Bases? É que um dos argumentos de António Costa no debate da Lei de Bases da Saúde (LBS) radica nesta pergunta quase filosófica. Há algum manual com resposta para isso, alguma regra dourada ou equação matemática? Que eu saiba, na democracia as regras são ditadas pelas pessoas e só elas definem o prazo de validade de qualquer lei. Dead man walking não se aplica a leis, pois não?
No que toca a leis fundamentais na saúde, até é um exercício interessante analisarmos períodos de vigência. A lei de Arnaut que criou o Serviço Nacional de Saúde (SNS) durou de 1979 a 1990, quando foi atropelada pela lei de bases de PSD e CDS. Onze anos de vida é muito ou pouco? Não deve servir de bitola ou criar qualquer padrão, imagino. É que nos 11 anos de vida da lei da direita era o PS que estava no governo e nem por isso determinou expirado o prazo. Será em décadas que se faz essa medida? Duas décadas depois da criação da lei de PSD e CDS que abria o SNS à rapina dos privados, era novamente o PS que estava no governo e continuou sem se preocupar se a lei estava moribunda ou não. Aliás, bem vistas as coisas, quase três décadas depois do ataque feito ao SNS pela direita concluímos que o PS vivia tranquilamente com essa LBS. Desisto deste exercício, já percebi que é um argumento que não conta para nada.
Quem determinou expirado o tempo da LBS da direita foram António Arnaut e João Semedo, construindo o projeto que o Bloco de Esquerda cunhou no Parlamento. Foi esse o empurrão determinante para que o PS e o Governo reconhecessem esta urgência. Não foi de forma rápida, nem à primeira, mas o caminho foi feito. Um ministro depois e um grupo de trabalho a mais, lá chegou a proposta do Governo no final do ano passado.
Desde o início o Bloco de Esquerda repetiu a frase de Arnaut e Semedo – “a única utilidade das PPP é ser o ‘banco de investimento’ dos hospitais privados” – e disse as condições para um caminho bem-sucedido: fechar as portas às PPP. O Governo sabia disso quando se sentou à mesa das negociações no Parlamento e, por isso mesmo, chegou a acordo com uma proposta de compromisso: acabar com a possibilidade das PPP na LBS, colocando uma norma transitória para que os atuais contratos chegassem ao seu término. Depois, veio a pressão dos privados e o mau tempo de Belém e o recuo do PS. Um recuo tão grande que agora faz depender a aprovação da LBS da manutenção do negócio das PPP. Para esconder esse percurso, acusa agora o Bloco de Esquerda de criar um caso político. Só para quem não tem memória.
Diz António Costa que as PPP significam apenas 4% dos gastos em saúde, o que torna ainda mais incompreensível a sua posição. É isso que coloca em causa a aprovação de uma nova Lei de Bases da Saúde? É que não está em causa uma posição intransigente do Bloco de Esquerda, nem sequer aquela caricatura que diz pretendermos acabar com a medicina privada. Quem quer ir ao privado ou ao setor social, tem esse direito e não está em causa. E mesmo o Estado recorre a privados para um conjunto de serviços imprescindíveis que contratualiza, garantindo o acesso a todos os cuidados mesmo quando não os consegue assegurar.
Aqui a questão é outra, é não aprender com a realidade onde as PPP tiveram de adulterar indicadores para não ficarem atrás na comparação com a gestão pública: a PPP de Cascais manipulou indicadores e fichas clínicas, a PPP de Vila Franca de Xira escondia que internava utentes em refeitórios e casas de banho, a PPP de Braga mandava os doentes mais complicados para os hospitais do Porto, a PPP de Loures tem um escandaloso exemplo da promiscuidade entre público e privado. Resumindo, as PPP tiveram de falsear indicadores para empatarem na avaliação com a gestão pública, se não o tivessem feito ficariam claramente atrás. O que fazer com este miserável balanço? Dar mais tempo à lei atual e a estes abusos será a responsabilidade do PS e de António Costa.
Uma lei de futuro é aquela que não se amarra aos erros do passado. E até é estranho que uma maioria parlamentar forjada contra os interesses de Belém esteja agora dependente de qualquer benção presidencial. Não há desculpas para quem não tiver a coragem de salvar o SNS do negócio dos privados.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico