O duro dilema da memória da Espanha
A imposição de uma visão da memória histórica sobre outra costuma servir as ditaduras, mas causa sempre danos nas democracias.
A recuperação da memória histórica num país que não ajustou as contas com o seu passado, como a Espanha, tanto pode representar um passo para a reconciliação como um recuo capaz de fazer renascer os fantasmas da extrema-direita alimentados pelo franquismo. A Espanha vive há anos esse dilema entre duros combates ideológicos, divisões partidárias, comissões de estudo nacionais e estrangeiras e disputas judiciais.
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A recuperação da memória histórica num país que não ajustou as contas com o seu passado, como a Espanha, tanto pode representar um passo para a reconciliação como um recuo capaz de fazer renascer os fantasmas da extrema-direita alimentados pelo franquismo. A Espanha vive há anos esse dilema entre duros combates ideológicos, divisões partidárias, comissões de estudo nacionais e estrangeiras e disputas judiciais.
A decisão do Supremo Tribunal em aceitar as reclamações dos netos de Franco, suspendendo a exumação do seu cadáver no Vale dos Caídos, é apenas mais um ponto num tecido delicado ou, se preferirem, um reavivamento de uma ferida que permanece por curar. O que ganha a Espanha em confrontar-se com o passado sangrento do franquismo e da Guerra Civil e o que pode perder fazendo-o?
Comecemos pelo essencial: a presença dos restos mortais do ditador num monumento que implicou trabalhos forçados dos vencidos da guerra e das vítimas das ferozes perseguições que se seguiram é um insulto à Espanha moderna, democrática e europeia que hoje conhecemos. Haver um lugar que, pela sua aberrante grandeza e por toda a sua concepção, tem como fim exaltar Franco e o franquismo é apenas uma forma de exibir e sublinhar a suposta glória de uma facção da memória histórica, por sinal a mais ignóbil.
Há mais de dez anos que sucessivos governos tentam negociar com estes traumas e, na sequência dos trabalhos de uma comissão independente, em 2011, o primeiro-ministro Pedro Sanchéz teve a coragem de avançar. No parlamento, a sua proposta foi aprovada com uma avassaladora maioria – só dois deputados do PP votaram contra.
O problema é que, entre 2005 ou 2011 e 2019 a Espanha política mudou. Os órfãos do franquismo exibem hoje de forma mais aberta a sua existência no seio da sociedade política espanhola, muitas vezes com apoios insuspeitos de segmentos ultraconservadores da Igreja saudosa da ditadura que lhe abençoou o poder.
A decisão do Supremo pode chocar no plano dos princípios, mas percebe-se no domínio das cautelas. Exumar Franco do monumento que o exalta é uma obrigação. Mas fazê-lo num clima de tolerância democrática, retirando trunfos ao ressentimento franquista, é um dever.
O grande desafio da Espanha está precisamente na conquista desse duro equilíbrio. É na política democrática e nos seus órgãos de representação que este combate tem de ser ganho. A imposição de uma visão da memória histórica sobre outra costuma servir as ditaduras, mas causa sempre danos nas democracias. Seja com Franco ou com os independentistas catalães, é bom que a Espanha saiba perceber esta realidade.