Como salvar a Democracia dos seus “novos donos”
É possível o aperfeiçoamento e reconciliação com a Democracia Representativa e a reconstrução da confiança dos cidadãos nos seus representantes.
Impressiona a ameaça de declínio da democracia constitucional representativa, esboçada a partir de um modelo agonístico de democracia (Mouffe). Deslumbram as suas potencialidades científicas, retóricas, pedagógicas e, especialmente, éticas. Somos impiedosamente arrebatados para o mais popular, o mais plural, o mais direto, o mais “democrático”, o mais transparente, o mais online. Tentados por tudo o mais que a democracia representativa não é, nas suas – supostamente – estafadas premissas agregativas e deliberativas.
Em alternativa, ecoam as profecias de um projeto democrático, a cargo de cidadãos democratas, plurais e radicais, pretensos heróis e únicos detentores da chave da interpretação autêntica das tensões permanentes entre a liberdade e a igualdade, conducentes a uma democracia plural e radical. Final. Plebiscitária e referendária. Essa sim, dizem! Esses “novos” e “fantásticos” cidadãos trazem consigo a fórmula mágica de novas formas de poder, mais compatíveis com os seus valores democráticos, fundadas num arruinamento contínuo do poder e da sua legitimidade, na paixão do confronto constante da política.
Na prática, substituem a ditadura das maiorias pela ditadura das minorias; empunham a “bandeira da igualdade” para enfraquecer todos e quaisquer potenciais adversários; advogam a liberdade para a aniquilarem em nome de uma obsoleta fairness doctrine ou na ânsia do domínio da pós-verdade e da pós-democracia através da criação... de outras pós-verdades e outras pós-democracias.
É este o caminho?
Estamos perante um novo compromisso ou o abuso da ilusão da proximidade, propalada pelos novos (ou retocados) populismos? Somem-se as inúmeras doses de pureza ideológica, retidão democrática ou legitimidade alegadamente fundada na racionalidade pura, dos que se movem numa democracia deliberativa digital, supostamente democrática. A restituição da dignidade à política, conjugando, na formulação mouffeana, o ideal dos direitos e do pluralismo com ideias de diligência pública e de preocupação ético-política, é propriedade dos tais “novos cidadãos”, democratas plurais e radicais, os novos donos da “nova democracia plural e radical”?
Enfim, o momento é decisivo. É de escolhas. A oportunidade é irrepetível.
Pela nossa parte, acreditamos que é possível o aperfeiçoamento e reconciliação com a Democracia Representativa e a reconstrução da confiança dos cidadãos nos seus representantes. Se reforçarmos os mecanismos de responsabilização democrática dos titulares dos cargos públicos; se alargarmos o sistema politico-constitucional aos cidadãos; se escolhermos alguns dos contributos da Democracia Semidirecta e da Democracia Deliberativa Digital; se garantirmos uma regulação do ciberespaço tecnologicamente neutra, avessa a imposições unilaterais de pretensas verdades oficiais.
Eis alguns, seis, dos meus contributos.
1. Em primeiro lugar, o alargamento do sistema político aos cidadãos exige a atenuação da mediação da representação pelos partidos, sem pôr em causa a governabilidade. Urge alterar o sistema eleitoral, através da introdução do modelo proporcional personalizado, permitido pela Constituição desde a revisão constitucional de 1997. Por revisão constitucional, há que permitir a candidatura de Movimentos de Cidadãos independentes às eleições legislativas e introduzir mudanças pontuais no sistema de governo, racionalizadoras da vertente parlamentar do sistema. Por exemplo, a introdução de uma cláusula barreira de 3%. É ainda preciso democratizar a própria democracia interna dos partidos. Através da garantia de participação direta de, pelo menos, todos os militantes na designação do respetivo líder e na escolha de todos os candidatos a cargos públicos – Presidente da República, deputados e autarcas. Todas as escolhas, diretas ou indiretas, de pessoas, têm de ser feitas obrigatoriamente por voto secreto.
2. O reforço da responsabilização democrática dos titulares de cargos públicos pode obter-se através de alterações aos Estatutos dos titulares dos cargos públicos. Está na hora de prever limites expressos à renovação de todos os mandatos, sem exceção; estabelecer impedimentos e incompatibilidades, claros e transparentes, que garantam um exercício exclusivo, isento e imparcial dessas funções públicas, bem como sanções eficazes e persuasivas para o respetivo incumprimento. Por fim, cumpre assumir que é preciso rever os salários dos políticos para dignificar o exercício de funções públicas e aliciar os melhores profissionais para a política. A exclusividade e a qualidade têm um preço, na maioria dos casos mais elevado que o atual, que deve ser pago por todos.
3. Para o reforço da proteção dos Direitos Fundamentais, urge alargar o acesso do cidadão à Justiça Constitucional. É preciso, de uma vez por todas, prever a queixa direta de constitucionalidade/recurso de amparo para a tutela dos direitos fundamentais pela justiça constitucional. Contra todos os atos e omissões de todos os poderes do Estado que violem a Constituição.
4. O reforço dos mecanismos da Democracia Semidirecta poderia passar pelo alargamento do objeto do referendo nacional e revisão do seu regime da vinculatividade.
5. Perante os desafios e potencialidades da Era Digital, impõe-se um modelo de Regulação do Ciberespaço tecnologicamente neutro, integrado e compreensivo, que converta a efetividade dos direitos fundamentais e a proteção efetiva dos cidadãos no ciberespaço no motor do Mercado Único Digital. Uma regulação que atente à especial sensibilidade dos direitos e liberdades de expressão e da comunicação no ciberespaço, incluída exclusivamente na administração independente. Um modelo de regulação que: i) garanta uma regulação coerente dos velhos e novos meios de comunicação, plenamente integrados num espaço de plena liberdade, pluralismo e livre concorrência, e que ii) assegure uma perspetiva global e integrada, sujeita aos mesmos valores, da privacidade e proteção dos dados pessoais e da cibersegurança. Uma visão transversal e multidisciplinar da produção das normas técnicas e tecnológicas, inserida numa abordagem pragmática da governação da Internet. Numa perspetiva jurídico-constitucional, urge estimular o papel do legislador nacional enquanto garante de legitimidade democrática das intervenções desvantajosas sobre direitos fundamentais no ciberespaço.
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Impressiona a ameaça de declínio da democracia constitucional representativa, esboçada a partir de um modelo agonístico de democracia (Mouffe). Deslumbram as suas potencialidades científicas, retóricas, pedagógicas e, especialmente, éticas. Somos impiedosamente arrebatados para o mais popular, o mais plural, o mais direto, o mais “democrático”, o mais transparente, o mais online. Tentados por tudo o mais que a democracia representativa não é, nas suas – supostamente – estafadas premissas agregativas e deliberativas.
Em alternativa, ecoam as profecias de um projeto democrático, a cargo de cidadãos democratas, plurais e radicais, pretensos heróis e únicos detentores da chave da interpretação autêntica das tensões permanentes entre a liberdade e a igualdade, conducentes a uma democracia plural e radical. Final. Plebiscitária e referendária. Essa sim, dizem! Esses “novos” e “fantásticos” cidadãos trazem consigo a fórmula mágica de novas formas de poder, mais compatíveis com os seus valores democráticos, fundadas num arruinamento contínuo do poder e da sua legitimidade, na paixão do confronto constante da política.
Na prática, substituem a ditadura das maiorias pela ditadura das minorias; empunham a “bandeira da igualdade” para enfraquecer todos e quaisquer potenciais adversários; advogam a liberdade para a aniquilarem em nome de uma obsoleta fairness doctrine ou na ânsia do domínio da pós-verdade e da pós-democracia através da criação... de outras pós-verdades e outras pós-democracias.
É este o caminho?
Estamos perante um novo compromisso ou o abuso da ilusão da proximidade, propalada pelos novos (ou retocados) populismos? Somem-se as inúmeras doses de pureza ideológica, retidão democrática ou legitimidade alegadamente fundada na racionalidade pura, dos que se movem numa democracia deliberativa digital, supostamente democrática. A restituição da dignidade à política, conjugando, na formulação mouffeana, o ideal dos direitos e do pluralismo com ideias de diligência pública e de preocupação ético-política, é propriedade dos tais “novos cidadãos”, democratas plurais e radicais, os novos donos da “nova democracia plural e radical”?
Enfim, o momento é decisivo. É de escolhas. A oportunidade é irrepetível.
Pela nossa parte, acreditamos que é possível o aperfeiçoamento e reconciliação com a Democracia Representativa e a reconstrução da confiança dos cidadãos nos seus representantes. Se reforçarmos os mecanismos de responsabilização democrática dos titulares dos cargos públicos; se alargarmos o sistema politico-constitucional aos cidadãos; se escolhermos alguns dos contributos da Democracia Semidirecta e da Democracia Deliberativa Digital; se garantirmos uma regulação do ciberespaço tecnologicamente neutra, avessa a imposições unilaterais de pretensas verdades oficiais.
Eis alguns, seis, dos meus contributos.
1. Em primeiro lugar, o alargamento do sistema político aos cidadãos exige a atenuação da mediação da representação pelos partidos, sem pôr em causa a governabilidade. Urge alterar o sistema eleitoral, através da introdução do modelo proporcional personalizado, permitido pela Constituição desde a revisão constitucional de 1997. Por revisão constitucional, há que permitir a candidatura de Movimentos de Cidadãos independentes às eleições legislativas e introduzir mudanças pontuais no sistema de governo, racionalizadoras da vertente parlamentar do sistema. Por exemplo, a introdução de uma cláusula barreira de 3%. É ainda preciso democratizar a própria democracia interna dos partidos. Através da garantia de participação direta de, pelo menos, todos os militantes na designação do respetivo líder e na escolha de todos os candidatos a cargos públicos – Presidente da República, deputados e autarcas. Todas as escolhas, diretas ou indiretas, de pessoas, têm de ser feitas obrigatoriamente por voto secreto.
2. O reforço da responsabilização democrática dos titulares de cargos públicos pode obter-se através de alterações aos Estatutos dos titulares dos cargos públicos. Está na hora de prever limites expressos à renovação de todos os mandatos, sem exceção; estabelecer impedimentos e incompatibilidades, claros e transparentes, que garantam um exercício exclusivo, isento e imparcial dessas funções públicas, bem como sanções eficazes e persuasivas para o respetivo incumprimento. Por fim, cumpre assumir que é preciso rever os salários dos políticos para dignificar o exercício de funções públicas e aliciar os melhores profissionais para a política. A exclusividade e a qualidade têm um preço, na maioria dos casos mais elevado que o atual, que deve ser pago por todos.
3. Para o reforço da proteção dos Direitos Fundamentais, urge alargar o acesso do cidadão à Justiça Constitucional. É preciso, de uma vez por todas, prever a queixa direta de constitucionalidade/recurso de amparo para a tutela dos direitos fundamentais pela justiça constitucional. Contra todos os atos e omissões de todos os poderes do Estado que violem a Constituição.
4. O reforço dos mecanismos da Democracia Semidirecta poderia passar pelo alargamento do objeto do referendo nacional e revisão do seu regime da vinculatividade.
5. Perante os desafios e potencialidades da Era Digital, impõe-se um modelo de Regulação do Ciberespaço tecnologicamente neutro, integrado e compreensivo, que converta a efetividade dos direitos fundamentais e a proteção efetiva dos cidadãos no ciberespaço no motor do Mercado Único Digital. Uma regulação que atente à especial sensibilidade dos direitos e liberdades de expressão e da comunicação no ciberespaço, incluída exclusivamente na administração independente. Um modelo de regulação que: i) garanta uma regulação coerente dos velhos e novos meios de comunicação, plenamente integrados num espaço de plena liberdade, pluralismo e livre concorrência, e que ii) assegure uma perspetiva global e integrada, sujeita aos mesmos valores, da privacidade e proteção dos dados pessoais e da cibersegurança. Uma visão transversal e multidisciplinar da produção das normas técnicas e tecnológicas, inserida numa abordagem pragmática da governação da Internet. Numa perspetiva jurídico-constitucional, urge estimular o papel do legislador nacional enquanto garante de legitimidade democrática das intervenções desvantajosas sobre direitos fundamentais no ciberespaço.
6. Por fim, a reconciliação dos cidadãos com o Estado e com a Democracia passa também pelo reforço das garantias de uma efetiva independência, de facto e de jure, das entidades reguladoras e pelo aumento dos seus mecanismos de Responsabilização Democrática. Isso pode passar, a nosso ver, por exemplo, pela alteração da forma de designação dos membros dos Conselhos Reguladores e pela garantia de efetiva independência financeira, a qual pode ser posta em causa através da indefinição das respetivas fontes de financiamento, bem como da sujeição a cativações orçamentais, ditadas por razões conjunturais. Importa ainda estabilizar por lei o estatuto remuneratório dos membros dos Conselhos Reguladores e reforçar os mecanismos de responsabilização pública dos membros das entidades reguladoras, através da prestação de contas públicas com maior frequência.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico