Três décadas depois, Tiananmen é um “não-acontecimento” para os jovens chineses

O massacre dos manifestantes em Pequim, em 1989, é objecto de uma censura fortíssima por parte do Estado chinês. Mas o cinismo das gerações que viveram os anos do crescimento económico também ajuda a esquecer.

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A fotografia mais icónica dos protestos - e da repressão - de 1989 Reuters

Todos os anos, no início de Junho, o Estado chinês mobiliza policias e recursos do seu vasto aparelho de segurança para vigiar de perto Ding Zilin, uma professora aposentada que quase não sai da sua casa em Pequim. Este ano, os cuidados são redobrados. Mas que ameaça pode suscitar uma octogenária solitária para o poderoso regime chinês?

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Todos os anos, no início de Junho, o Estado chinês mobiliza policias e recursos do seu vasto aparelho de segurança para vigiar de perto Ding Zilin, uma professora aposentada que quase não sai da sua casa em Pequim. Este ano, os cuidados são redobrados. Mas que ameaça pode suscitar uma octogenária solitária para o poderoso regime chinês?

Há 30 anos, Ding viu o filho de 17 anos, Jiang Jielian, e o marido, Jiang Pekun, serem mortos no mesmo dia durante a repressão do Exército aos manifestantes na Praça de Tiananmen, em Pequim. Decidiu fundar a organização Mães de Tiananmen para juntar familiares de manifestantes mortos durante os protestos, tornando-se num empecilho para o Partido Comunista Chinês (PCC) na sua missão de apagar qualquer réstia da memória dos acontecimentos de 4 de Junho de 1989.

Há três anos, o New York Times dizia que a linha telefónica da casa de Ding tinha sido cortada durante o aniversário dos protestos e que o Gabinete de Segurança Pública lhe tinha fornecido um telemóvel com três números apenas, incluindo o de emergência médica nacional.

Não há menção que passe despercebida ao aparelho de segurança. Este ano, um homem foi detido na província de Sichuan depois de ter publicado no Twitter uma fotografia de uma garrafa de vinho com a inscrição “Em memória de 8964”, em referência à data do massacre em Tiananmen. De acordo com o site China Change, que compila notícias sobre violações de direitos humanos no país, outras quatro pessoas foram presas durante três anos pelo mesmo motivo.

O aparelho repressivo do regime chinês intensifica a sua actuação todos os anos à medida que se aproxima o aniversário dos protestos de Tiananmen. Qualquer comemoração é proibida e mesmo comentários nas redes sociais são vigiados ao milímetro pelos censores. Há muitos assuntos que os chineses estão impedidos de discutir – as estimativas apontam para o bloqueio de 26 mil termos de pesquisa no Google e de 880 páginas na Wikipédia –, mas os acontecimentos de Junho de 1989 estão especialmente vedados.

“As autoridades chinesas têm receio de acções colectivas contra o Governo”, explicou à Al-Jazira o autor do livro The Great Firewall of China: How to Build and Control na Alternate Version of the Internet, James Griffith.

Primavera em Pequim

No final dos anos 1980, a China atravessava um período acelerado de reformas modernizadoras, promovidas por Deng Xiaoping. A era de Mao Tsetung tinha sido oficialmente enterrada, e Deng conseguiu finalmente espaço de manobra para abrir a China às reformas, aproximando-a das economias de mercado. Foi nesta altura que foram inauguradas as primeiras zonas económicas especiais – que hoje são as grandes metrópoles no litoral do país.

Ao mesmo tempo, havia uma grande expectativa de que, tal como estava a acontecer na União Soviética com Mikhaïl Gorbatchev​, o regime de partido único estivesse na disposição de promover reformas política internas – uma espécie de “perestroika” chinesa. A 15 de Abril, a morte do ex-secretário geral do PCC, Hu Yaobang, considerado um reformista, serviu de pretexto para que milhares de estudantes se concentrassem em Tiananmen para pedir maior abertura política, mas também denunciando as práticas corruptas da elite partidária.

“Em 1989, a pobreza asfixiava o país de cima a baixo, e nas zonas rurais, onde a maioria das pessoas ainda vivia, a mera subsistência era a norma”, recorda a analista Bonnie Girard, que na altura vivia em Pequim, num artigo na revista The Diplomat. “A China estava na iminência de qualquer coisa mais do que apenas uma explosão económica, algo cuja magnitude poucos previam, mas que todos aguardavam calmamente.”

Ao longo das semanas, mais gente se juntava aos estudantes em Tiananmen, e os protestos alastravam a outras cidades. Um mês depois do início dos protestos, a China recebia Gorbatchov numa visita de Estado, com o objectivo não declarado de mostrar ao líder soviético a unidade e estabilidade do regime. O timing não podia ser pior. A cerimónia de boas-vindas foi cancelada e a agenda da visita sofreu várias alterações, embaraçando o PCC.

A liderança chinesa que até aí se encontrava dividida, entre os que mostravam disponibilidade para negociar o fim dos protestos e aqueles que defendiam uma resposta dura, decidiu declarar a lei marcial, abrindo caminho a uma intervenção do Exército do Povo. Após semanas de impasse, na noite de 3 para 4 de Junho, os militares abriram fogo sobre os manifestantes, e os tanques ocuparam Tiananmen.

O número de mortos causados pela repressão continua a ser, 30 anos depois, objecto de discussão. O Governo recusa divulgar qualquer informação sobre os acontecimentos, e as estimativas variam entre poucas centenas e dez mil vítimas, segundo um antigo embaixador britânico.

Memória apagada

A China continuou o seu caminho de reformas económicas, tornando-se na potência mundial que é hoje. Mas o massacre de Tiananmen permanece na sombra para a maioria dos chineses. As gerações mais novas pouco ou nada sabem sobre o que se passou a 4 de Junho.

Para o regime, recordar que houve um movimento que contestou a hegemonia do PCC é um anátema. “A principal lição que a liderança partidária aprendeu foi a de que não iria tolerar divisões, sobretudo publicamente, uma vez que isso iria permitir levantamentos populares e o caos”, observa o analista do Instituto Brookings, Jeffrey Bader, que no final dos anos 1980 pertencia ao Departamento de Estado dos EUA.

O jornal de Hong Kong South China Morning Post recordava recentemente uma história que demonstra a lacuna na memória da população chinesa sobre o 4 de Junho. Em 2007, um jornal de Chengdu publicou um anúncio que prestava homenagem às mães que perderam filhos durante os protestos. A recepcionista responsável pela aprovação da publicidade nunca tinha ouvido falar de Tiananmen, e julgava tratar-se de um acidente numa mina.

A censura promovida contra qualquer comemoração ou discussão sobre o massacre de Tiananmen é frequentemente apontada como a razão para que os mais jovens pouco ou nada saibam sobre o episódio. Mas há quem note igualmente a mudança geracional ocorrida na China, onde as gerações que nasceram no período do crescimento económico, aliado à estabilidade fornecida pela consolidação do poder do PCC, dão hoje prioridade a questões materiais.

“Os chineses podem ser muito influenciados pelo Estado, mas esta propaganda funciona em conjugação com a realidade empírica do enorme crescimento de ganhos materiais, dos quais toda a população (urbana e rural) beneficiou directamente”, nota o professor do Colégio de Defesa Nacional dos Emirados Árabes Unidos, Christopher Colley, num artigo no The Diplomat. “O Ocidente precisa de perceber que as realidades sociais e económicas na China fazem deste aniversário um não-acontecimento para a maioria dos chineses.”