O homem e o tanque
Deng, que dera a ordem para reprimir os manifestantes de Tiananmen, anunciou que isso queria dizer o contrário do que muitos chegaram a admitir: que as reformas económicas continuariam.
1. No final do dia 3 de Junho de 1989, o fotógrafo da AP Jeff Widener pedalava o mais depressa que podia ao longo da ampla Avenida Changan em direcção ao centro dos acontecimentos. Tinha-lhe cabido em sorte fazer o “turno da noite” na Praça Tiananmen. Na sede da agência, em Pequim, sabia-se que alguma coisa estava para acontecer. A cidade estava cercada por forças militares. Os rumores espalhavam-se como o vento. Pouco depois da meia-noite, Widener vislumbrou um carro de combate a avançar pela mesma avenida a toda a velocidade. Um outro aproximou-se envolto em chamas. Começou a ouvir fortes explosões e o som de rajadas de balas cortando o ar. O caos instalou-se rapidamente, enquanto os manifestantes resistiam. Continuou. Aproximou-se. Disparou, disparou, disparou, sem sequer prestar muita atenção, toda esta concentrada na luz vermelha intermitente da máquina fotográfica que dava o pior dos sinais: bateria fraca. Continuou a disparar. Uma explosão derrubou-o e atirou a máquina para longe. Estava quase desfeita. Regressou à agência já de manhã, sem saber se o rolo estaria a salvo. Os contornos da fotografia que haveria de percorrer o mundo desenhavam-se nítidos no líquido da revelação. Um homem de camisa branca e um saco numa das mãos ergue-se, minúsculo e, ao mesmo tempo, um gigante, diante do primeiro de uma longa fila de blindados. Já era dia nesse fatídico 4 de Junho de 1989. O embaixador britânico enviou para Londres um telegrama a dizer que calculava dez mil mortos. Até hoje, ninguém sabe quantos morreram. Deng Xiaoping punha um fim brutal à contestação ao regime comunista.
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1. No final do dia 3 de Junho de 1989, o fotógrafo da AP Jeff Widener pedalava o mais depressa que podia ao longo da ampla Avenida Changan em direcção ao centro dos acontecimentos. Tinha-lhe cabido em sorte fazer o “turno da noite” na Praça Tiananmen. Na sede da agência, em Pequim, sabia-se que alguma coisa estava para acontecer. A cidade estava cercada por forças militares. Os rumores espalhavam-se como o vento. Pouco depois da meia-noite, Widener vislumbrou um carro de combate a avançar pela mesma avenida a toda a velocidade. Um outro aproximou-se envolto em chamas. Começou a ouvir fortes explosões e o som de rajadas de balas cortando o ar. O caos instalou-se rapidamente, enquanto os manifestantes resistiam. Continuou. Aproximou-se. Disparou, disparou, disparou, sem sequer prestar muita atenção, toda esta concentrada na luz vermelha intermitente da máquina fotográfica que dava o pior dos sinais: bateria fraca. Continuou a disparar. Uma explosão derrubou-o e atirou a máquina para longe. Estava quase desfeita. Regressou à agência já de manhã, sem saber se o rolo estaria a salvo. Os contornos da fotografia que haveria de percorrer o mundo desenhavam-se nítidos no líquido da revelação. Um homem de camisa branca e um saco numa das mãos ergue-se, minúsculo e, ao mesmo tempo, um gigante, diante do primeiro de uma longa fila de blindados. Já era dia nesse fatídico 4 de Junho de 1989. O embaixador britânico enviou para Londres um telegrama a dizer que calculava dez mil mortos. Até hoje, ninguém sabe quantos morreram. Deng Xiaoping punha um fim brutal à contestação ao regime comunista.
As manifestações tinham começado em finais de Abril na gigantesca praça de Pequim, mobilizando os estudantes das universidades da capital chinesa, para se estenderem rapidamente à população e contagiar o país inteiro. À data do massacre, havia protestos em 400 cidades chinesas.
2. Poucas semanas antes do massacre, Mikhaïl Gorbatchov visitara Pequim para restabelecer as relações entre a União Soviética e a China, congeladas desde o cisma sino-soviético de 1960. O Presidente soviético já começara a descongelar o mundo. Em 1989, as praças de Praga, Budapeste, Leipzig ou Varsóvia já estavam repletas de gente, reivindicando dia e noite a democracia e a liberdade. Faltavam apenas cinco meses para a queda do Muro de Berlim.
Deng viu-se obrigado a cancelar a cerimónia prevista para o centro da Praça Tiananmen, onde Gorbatchov deveria depositar uma coroa de flores — no mesmo sítio era visível uma imitação da Estátua da Liberdade. Os estudantes olhavam para o líder soviético como uma referência. A universidade de Pequim convidou-o para uma palestra sobre a Perestroika e a Glasnost, que não aceitou. A visita do líder soviético a Pequim foi uma verdadeira dor de cabeça para as autoridades chinesas: mudanças de itinerários ou cancelamentos de última hora, tudo o que fosse preciso para que o líder soviético nunca se cruzasse com os protestos.
Em 1979, Deng dera início às profundas reformas que haveriam de libertar as forças económicas da China. “É glorioso enriquecer.” Não disse que era glorioso ser livre. O Partido Comunista nunca correria o risco de pôr em causa o seu controlo férreo sobre a sociedade chinesa. Era, aliás, a primeira das lições que retirava das reformas que Gorbatchov lançara em 1986. O Presidente russo evitou qualquer referência directa aos protestos. Estava lá para apertar a mão a Deng e pôr fim ao diferendo sino-soviético. No banquete oficial deixou uma mensagem nas entrelinhas, apelando a um “novo equilíbrio entre gerações — a energia da gente nova capaz de falar alto contra o conservadorismo e a sabedoria das gerações mais velhas”.
Gorbatchov viu “uma revolução a acontecer”, como confidenciou ao seu braço direito, mas também lhe disse que não queria ver nada de semelhante na Praça Vermelha. Durante o golpe Agosto de 1991, a derradeira tentativa da ala dura do Partido Comunista e das forças de elites soviéticas para depor Gorbatchov, Pequim apoiou os golpistas. Nessa altura, a tremenda luta entre reformadores e conservadores já estava resolvida dentro do comité central do Partido Comunista Chinês. Deng, que dera a ordem para reprimir os manifestantes de Tiananmen, anunciou que isso queria dizer o contrário do que muitos chegaram a admitir: que as reformas económicas continuariam. A China continuou a enriquecer. A contestação foi reprimida. Trinta anos depois, é o extraordinário sucesso das reformas de Deng que permite à China ambicionar o estatuto de única potência capaz de rivalizar com os Estados Unidos no mundo. Os chineses contentam-se com o seu próprio enriquecimento. Enquanto durar, pouca atenção prestarão à democracia e à liberdade. Tiananmen? O que foi?
Resta a memória dos que conseguiram fugir e hoje vivem, amargurados e impotentes, em Paris ou em Washington num exílio só aparentemente feliz. A cada ano que passa sobre o massacre, a imprensa americana e europeia volta a dar-lhes atenção. A China soma e segue. A Praça Tiananmen voltou a receber os visitantes ilustres, muitos deles líderes ocidentais. Eles já nada têm a acrescentar.