Agustina: talvez as bíblias
Na escrita de Agustina, há um desígnio, uma aspiração, uma ambição bíblica. Muitos livros, muitas histórias, muitos saberes, todo o sentido.
1. Já o artigo que estava a escrever ia a meio – artigo que versava sobre os mitos e as narrativas que por aí circulam a respeito das escolhas para os postos-chave da governação europeia –, quando chegou a notícia da morte de Agustina.
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1. Já o artigo que estava a escrever ia a meio – artigo que versava sobre os mitos e as narrativas que por aí circulam a respeito das escolhas para os postos-chave da governação europeia –, quando chegou a notícia da morte de Agustina.
2. Agustina é a escritora de que mais gosto, a minha preferida. É também a melhor. Às vezes, os que mais gostamos são também os melhores. Li Agustina, leio Agustina, lerei Agustina. Agustina é a minha escolha, a minha paixão, a minha referência. A sua escrita não é fascinante, é fascínio. A sua autoria não é original, é origem. A sua personalidade não é cativante, é cativação e cativeiro. Agustina liberta, mas é impossível libertarmo-nos de Agustina.
3. Já num longínquo passado – passaram dezasseis anos – escrevi aqui sobre Agustina. Recentemente, escrevi ainda aqui sobre Alberto Luís, que foi muito mais do que o seu marido (o que, já de si, não seria pouco). Entre ambos os escritos, fui citando Agustina, que é também a mais abundantemente citável dos que se atrevem a escrever. Conheci bem Alberto Luís e, pela sua mão, foi-me dado conhecer razoavelmente Agustina e até a família mais próxima. Umas poucas vezes em sua casa, muitas mais em seminários e conferências e nos espaços de convívio que proporcionavam. O mistério – agora chamado “génio” – de Agustina não estava apenas nas suas páginas, estava outrossim na sua presença, nas suas palavras, no seu olhar. Os dizeres da mulher de carne e osso não defraudavam as letras da palavra escrita. Também eles transpiravam sageza, sabedoria, sapiência. Também eles carregavam finura, humor, ironia. Havia narrações e tramas, cheias de pessoas, personagens, juízos e ilações. Havia o conhecimento profundo da alma, o mapeamento meticuloso do corpo e a compreensão maturada da natureza de ambos e da sua relação. Tudo estava lá, só falado, só conversado, só verbalizado. A Agustina que falava era a Agustina que escrevia. Um par de horas com ela era um romance, um romance ouvido, cheio de personagens, repleto de vícios, virtudes e demais instintos que não são vícios nem virtudes. Coisa rara, surpreendente e intrigante: falar com ela, era lê-la.
4. Tudo impressiona em Agustina. Mas o que mais impressiona nesse “tudo” é a sua “literatura oracular”: a verdade revelada em sentenças lapidares. Sentenças, esclareça-se, no sentido triplo de afirmação, de máxima e de juízo. A capacidade de, em frases curtas e exemplares, captar essências, apreender mistérios, revelar segredos do devir humano. Cada sentença é um provérbio, normalmente exarado em modo erudito e universal, mais raramente de vezo popular, mas que pode ser sempre desencarcerado da trama novelesca ou romanesca. Agustina inventou uma escrita proverbial ou oracular; uma bíblia de saberes múltiplos, que brilha e vive para lá da narração. Cada dito sapiencial tem luz própria. Cada par de páginas é um templo de Delfos, em que há um oráculo a merecer interpretação e pronúncia. Oráculo que, por si, justifica o romance e, sozinho, se bem pronunciado, pode dar origem, como na ultramoderna física das redes e das suas estruturas, a um novo romance. De duas linhas pode nascer uma história, de um gesto pode engendrar-se uma personagem, de uma sentença pode organizar-se um caderno de ética ou um manual de estética. Dito à boa maneira da autora: “ali não se pagam caro as páginas geniais”.
5. Causa espanto — da cepa do que se abriga nos primórdios da filosofia — a ciência da natureza humana, das suas entranhas e das suas profundezas. Mais espanto, o acerto dos traços dos retratos portugueses. E, nos retratos portugueses, os quadros da vida do Douro, do Minho e do Porto. Só Camilo, inspiração e obsessão consciente, chegou ao númeno daquelas terras. Apesar da intimidade com as gentes e as terras e do domínio avassalador do seu conhecimento, na sua escrita nada subsiste de provinciano, de específico ou de particular. No universo de Agustina tudo é universal. Tudo é à escala humana, que o mesmo é dizer, à escala da humanidade inteira e toda. Tudo o que o humano tem de mau ou de bom, de pérfido ou de leal, de perverso ou de inocente, está lá. Toda a carga, toda a intenção, toda a vontade. E todo o destino, todo o fado, toda a conformação. Do arbítrio à predestinação, tudo se consome e tudo se consuma.
6. Na escrita de Agustina, há um desígnio, uma aspiração, uma ambição bíblica. Muitos livros, muitas histórias, muitos saberes, todo o sentido. Essa bíblia ou essas bíblias de Agustina não são tratados de filosofia, ensaios de política, dicionários de religião, cursos de psicanálise, guias turísticos, livros de auto-ajuda, enciclopédias do amor ou, simplesmente, recensões do kamasutra. São tudo isso, na medida justa, e mais do que isso, em dose proporcionada. São deslumbrantes manuais de geografia. De geografia humana.
SIM. António Guterres. A atribuição do prémio Carlos Magno sublinha a defesa dos valores europeus no que de melhor têm: a sua universalidade. Algo que honra o próprio, mas também Portugal.
SIM. Associação Comercial do Porto. Agraciada pelo Presidente da República como membro honorário da Ordem do Infante D. Henrique. Um tributo justo ao relevo e à modernidade da sua intervenção cívica.