Um adeus sóbrio e sentido à “verdadeira Sibila”
Agustina soube retratar como ninguém a conversão do Portugal antigo e rural no país urbano que estava a nascer, disse Marcelo Rebelo de Sousa à saída da missa fúnebre da escritora, celebrada por um bispo que leu A Sibila no Seminário.
É muito provável que Agustina tivesse apreciado o seu funeral. A solenidade da Sé Porto, na sua grandeza ligeiramente anacrónica, a homilia de um bispo que manifestamente lhe lera a obra, a nota oficial dada pela presença do chefe de Estado, da ministra da Cultura e do presidente da Câmara do Porto, e um número de circunstantes, entre personalidades públicas, genuínos admiradores anónimos e eventuais profissionais de exéquias, apenas suficiente para compor a cerimónia sem correr o risco de a converter num espectáculo.
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É muito provável que Agustina tivesse apreciado o seu funeral. A solenidade da Sé Porto, na sua grandeza ligeiramente anacrónica, a homilia de um bispo que manifestamente lhe lera a obra, a nota oficial dada pela presença do chefe de Estado, da ministra da Cultura e do presidente da Câmara do Porto, e um número de circunstantes, entre personalidades públicas, genuínos admiradores anónimos e eventuais profissionais de exéquias, apenas suficiente para compor a cerimónia sem correr o risco de a converter num espectáculo.
Quando o caixão saiu da catedral, a meio da tarde desta terça-feira, para rumar ao jazigo de família no Peso da Régua, a escritora foi saudada por uma calorosa salva de palmas das duzentas ou trezentas pessoas reunidas no terreiro da Sé, incluindo alguns turistas tresmalhados que procuravam perceber o que se passava. “Uma escritora, uma grande escritora”, explicámos concisamente a um casal vagamente anglófono, que nem por isso pareceu mais esclarecido.
Os que quiseram despedir-se de Agustina tinham começado a aparecer logo de manhã na Sé, como o líder do PSD, Rui Rio, o seu antecessor Pedro Passos Coelho, ou ainda Artur Santos Silva e Valente de Oliveira. E na missa de corpo presente, celebrada pelo bispo do Porto, D. Manuel Linda, compareceram, para citar apenas alguns, a líder do CDS, Assunção Cristas, Guilherme Oliveira Martins, a ex-ministra da Cultura Isabel Pires de Lima ou a presidente da administração de Serralves, Ana Pinho. E alguma gente das letras, como os ensaístas Arnaldo Saraiva ou Maria João Reynaud, mas poucos escritores.
Se D. Manuel Linda sublinhou compreensivelmente a dimensão cristã da pessoa e a da obra, já não é qualquer um que recorre “ao insuspeito Óscar Lopes” para argumentar que a “imperfeição, fealdade, injustiça e mentira” prevalecentes em muitas personagens da romancista são o sinal de uma carência humana sem a qual não existe abertura ao mistério e ao sagrado. E após ter citado uma passagem do romance Prazer e Glória na qual Agustina observa que a ausência de Deus é tão forte como a sua presença, o bispo do Porto defendeu que “de alguma forma, numa perspectiva muito sibilina, encontramos nesta nossa autora o melhor da dimensão profética, eu diria mesmo da dimensão teológica”. E acrescentou: “A verdadeira sibila não era a Quina.” Isto é, a protagonista do mais conhecido romance de Agustina, que D. Manuel Linda, então ainda estudante no Seminário do Porto, recebeu das mãos da autora, devidamente dedicado e assinado, como lembrou na sua homilia.
“Obrigado, Deus, porque nos deste uma pessoa de tão alta categoria intelectual, religiosa, cristã; e obrigado, Agustina, por esta extraordinária lição de teologia que a tua vida acabou por nos dar”, concluiu o bispo.
No final da missa, Marcelo Rebelo de Sousa esquivou-se a confirmar se gostaria ou não de ver Agustina no Panteão, observando que essa é uma decisão que caberá à família e aos deputados, mas quando lhe perguntaram o que ficará da extensa bibliografia da romancista, não se ficou por uma resposta de circunstância e, mal se conseguindo fazer ouvir entre o ruído do vento, os gritos das gaivotas e os sinos da Sé, deixou uma síntese perspicaz daquilo que considera ser uma dimensão decisiva desta obra. “Com o seu génio, e a ligação que tinha às suas raízes, Agustina revelou-nos esse Portugal que estava a acabar e o outro Portugal que começava”, afirmou o Presidente da República. E precisou: “Ao fazer os seus retratos de família, e porventura até da sua própria família, foi fazendo o retrato dessa mudança, de um Portugal rural, antigo regime, século XIX, que se foi convertendo num país também urbano, e depois metropolitano.” Agustina, diz, “conhecia a natureza humana e conhecia bem as personalidades desses vários Portugais, e através das suas personagens foi pintando o retrato psicológico e sociológico dessa mudança”.