Ninguém sai do luto como entrou
O que é interessante, no caso de Cave, e ele tem reflectido isso indirectamente, é que os rituais de luto colectivo se perderam, produto de uma sociedade individualizada.
A tristeza, o luto, as perdas. Fazem parte da condição humana. Todos somos submetidos ao provir da existência. Tudo se desgasta lentamente. O corpo enfraquece, os anos vão deixando marcas, as doenças vão-nos retirando algum vigor. Não há fuga possível. Um dia todos morremos.
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A tristeza, o luto, as perdas. Fazem parte da condição humana. Todos somos submetidos ao provir da existência. Tudo se desgasta lentamente. O corpo enfraquece, os anos vão deixando marcas, as doenças vão-nos retirando algum vigor. Não há fuga possível. Um dia todos morremos.
Mas existem rupturas, eventos traumáticos, tragédias, enfim, acontecimentos que potenciam um antes e um depois, que quebram esse fluir natural. Uma separação dolorosa. A entrada inesperada para o desemprego. O imprevisto de uma traição. Um acidente grave. A morte repentina de um filho como aconteceu com o cantor e músico Nick Cave.
Foi há três anos, quando o filho, Arthur, de 15, caiu de um penhasco em Brighton. Inicialmente resguardou-se, não falando publicamente do sucedido. Mas, aos poucos, tem vindo a fazê-lo, sempre numa lógica de interacção com o público, cujo desenlace actual tem sido uma digressão solitária onde vai falando com a assistência e tocando música ao piano.
Uma das motivações, afirma, foram as inúmeras pessoas que partilharam com ele histórias com pontos de contacto com a sua e ele ter percebido que essa interacção acabou por ser importante no seu processo de luto. A sua história tem gerado curiosidade por ser personalidade pública, mas também pela generosidade, coragem e tranquilidade com que tem exposto a sua experiência. E logo ele que, aos olhos de muitos, era visto de forma equívoca como distante e incorporação viva das mitologias rock.
Acontecimentos como o por ele vivido são extremamente dolorosos e muitas vezes destrutivos. Mas também podem resultar numa possibilidade de reescrita identitária. Sinalizarem uma renovada forma de nos relacionarmos connosco, com os outros e com a realidade circundante, potenciando uma espécie de renascimento. À distância, apesar de cada processo ser singular, parece ser esse o caso de Cave.
O luto, a forma como respondemos a uma perda, não é linear. Existem alguns estágios pelos quais, quase inevitavelmente, se passa (negação, culpabilização, zanga, tristeza, aceitação), mas nem isso é hoje consensual. Uma coisa é certa: esquecer não é recurso. Mais vale integrar ou atribuir sentido. Só dessa forma será possível criar espaço para o amadurecimento pessoal e para uma existência mais consciente, reconciliada e empática.
O que é interessante, no caso de Cave, e ele tem reflectido isso indirectamente, é que os rituais de luto colectivo se perderam, produto de uma sociedade individualizada. Por um lado, o enlutado, não quer sobrecarregar os outros. Mas também deixámos de nos envolver mesmo, tentando compensar esse facto digitalmente, nas redes sociais, que são lugares onde o luto é profusamente partilhado. As condolências públicas são a forma que encontrámos de lamentar as nossas próprias perdas.
Não surpreende a identificação com Cave. No fim de contas somos todos enlutados. Através dele percebe-se que perante situações traumáticas o destino pode ter contornos criativos e não ser necessariamente aniquilador. A travessia é angustiada e algumas das perdas podem não ser recuperadas. Mas a possibilidade de haver ganhos existenciais é real. Ninguém sai do luto como entrou.