Padre acusado de escravidão regressou à fraternidade contra a vontade da Igreja

Arquidiocese de Braga diz que “não se viu na necessidade de extinguir” a Fraternidade Missionária de Cristo Jovem, onde terão ocorrido os crimes já noticiados. A mulher identificada como a principal agressora foi afastada da comunidade.

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A fraternidade continua a funcionar, depois das investigação que levou à acusação de escravidão

A Arquidiocese de Braga exigiu ao padre Joaquim Milheiro que abandonasse a Fraternidade Missionária de Cristo Jovem, depois das buscas da Polícia Judiciária, em Novembro de 2015, oferecendo-lhe uma morada alternativa na sua casa sacerdotal, mas ele não quis permanecer afastado da instituição particular de solidariedade social (IPSS) que geria com três mulheres e acabou por regressar à propriedade em Requião, Vila Nova de Famalicão. É lá que continua, “bastante frágil”, quando já se sabe que foi acusado, em conjunto com as três mulheres e o próprio Centro Social de Apoio e Orientação da Juventude (entidade formal da fraternidade), de nove crimes de escravidão. Ali, diz a acusação do Ministério Público de Guimarães, vivia-se um “regime de medo”. A arquidiocese está a acompanhar o caso e fruto de mudanças entretanto ocorridas, diz que “não se viu na necessidade de extinguir a fraternidade”.

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A Arquidiocese de Braga exigiu ao padre Joaquim Milheiro que abandonasse a Fraternidade Missionária de Cristo Jovem, depois das buscas da Polícia Judiciária, em Novembro de 2015, oferecendo-lhe uma morada alternativa na sua casa sacerdotal, mas ele não quis permanecer afastado da instituição particular de solidariedade social (IPSS) que geria com três mulheres e acabou por regressar à propriedade em Requião, Vila Nova de Famalicão. É lá que continua, “bastante frágil”, quando já se sabe que foi acusado, em conjunto com as três mulheres e o próprio Centro Social de Apoio e Orientação da Juventude (entidade formal da fraternidade), de nove crimes de escravidão. Ali, diz a acusação do Ministério Público de Guimarães, vivia-se um “regime de medo”. A arquidiocese está a acompanhar o caso e fruto de mudanças entretanto ocorridas, diz que “não se viu na necessidade de extinguir a fraternidade”.

Não eram só as agressões praticamente diárias a que eram sujeitas as mulheres aliciadas para a propriedade falsamente identificada como convento que as levavam a viver “totalmente subjugadas, pelo temor”, segundo o MP. O isolamento a que eram votadas e o tipo de religião praticada pelo sacerdote e as falsas freiras que com ele geriam a instituição fizeram com que as vítimas, segundo a acusação, se vissem “coarctadas na sua liberdade de autodeterminação, nomeadamente, em abandonar a instituição ou em não proceder conforme lhes era ordenado”.

Das nove mulheres sobre as quais terá sido praticado o crime – há pelo menos outras três, cujos casos já prescreveram –, quatro tinham entre 14 e 16 anos quando chegaram à fraternidade e nenhuma teria mais de 22 anos no momento de ingresso. Há dúvidas sobre quantos anos teria Maria Amélia na data em que entrou na fraternidade, mas sabe-se que terá permanecido na casa durante pelo menos 20 anos, até se suicidar, em Agosto de 2004, segundo o MP, em consequência do “estado depressivo profundo” a que chegou, fruto “da conduta dos arguidos”. Todas seriam “de raízes humildes, com poucas qualificações ou emocionalmente fragilizadas e com pretensão a integrarem uma comunidade espiritual de raiz católica, piedosas e tementes a Deus”, descreve-se na acusação.

O que encontraram foi uma entidade gerida “à margem da igreja Católica com total secretismo” e em que dificilmente tiveram acesso a algum dos objectivos citados no estatuto da IPSS: o apoio a adolescentes e jovens, apoio às famílias, apoio à integração social e comunitária e a educação e formação profissional dos cidadãos, com espírito cristão. Em vez disso, descreve o MP na acusação, “aproveitando-se da fé das ofendidas, [os arguidos] apresentavam-lhes um Deus como alguém que castiga, oprime e envia para o inferno, impondo, em consequência, um rigor espiritual opressivo sobre as mesmas para que elas, aterrorizadas, lhes devessem total obediência.”

Para que o terror fosse total, Arminda Costa, apontada como a principal perpetradora das agressões constantes sofridas pelas vítimas, sempre com “conhecimento e anuência de todos os demais arguidos”, aproveitava os domingos para ler um livro em que se se relatava “passagens de pessoas que tinham saído dos conventos e que passado pouco tempo tinham sido condenadas, referindo que ‘tinham acontecido desgraças’”.

Foi a esta mulher que “foi exigido” pela Arquidiocese de Braga que abandonasse a fraternidade, na conclusão de uma investigação interna iniciada em 2014, “para apurar a realidade”, depois de ex-membros da associação de fiéis se terem queixado de “presumíveis anomalias na vida da comunidade”. “A decisão foi acatada e a Sr.ª Maria Arminda regressou à sua terra natal, onde reside”, refere-se no comunicado emitido esta quarta-feira, por aquela entidade.

Regresso à normalidade

A arquidiocese precisa que após a saída de Arminda Costa foram ouvidas “novamente as duas jovens residentes na fraternidade”, que transmitiram “categoricamente” aos responsáveis da igreja que “a vida tinha retomado uma normalidade saudável”. “Nesse sentido, a arquidiocese não se viu na necessidade de extinguir a fraternidade, na expectativa que ela seguisse, então, um novo rumo”, explica-se no comunicado.

O MP conclui que, fruto das agressões, humilhações e castigos a que eram submetidas as vítimas, os arguidos conseguiram que estas “executassem, por temor, todos os trabalhos necessários para o normal funcionamento da instituição, sem qualquer contrapartida material e espiritual que desejavam, com uma completa relação de domínio sobre as ofendidas, que vivenciavam um permanente ‘regime de medo’, não tendo poder de decisão sobre o modo e tempo de prestação do trabalho.”

Os arguidos, refere-se ainda, “sujeitaram as ofendidas a trabalhos que eles não queriam executar, mediante a prática dos supra descritos insultos, agressões e castigos, como se se tratassem de propriedade sua, com total desumanização das ofendidas e limitação da sua liberdade de movimentos”.

A moldura penal para o crime de que estão acusados vai de cinco a 15 anos de prisão.

No comunicado emitido esta quarta-feira, a Arquidiocese de Braga refere que “dada a complexidade do caso” continua “a acompanhar a comunidade e a colaborar com o Ministério Público”, na expectativa que “toda a verdade seja apurada.” Já o Instituto da Segurança Social garante que a IPSS “não tem acordo de cooperação” com este organismo do Estado e que não recebeu qualquer queixa relativa à fraternidade. “Estando o Ministério Público a investigar não foi iniciada investigação por parte do Instituto da Segurança Social, a menos que seja solicitada colaboração, o que não sucedeu até à data”, esclarece fonte do instituto.

A Fraternidade Missionário de Cristo Jovem tornou-se conhecida pelo menos desde 1999, por ser responsável pela venda da “Cruz do Amor”, símbolo ligado a uma suposta vidente francesa, a quem Jesus teria pedido a construção de uma cruz de 738 metros, através da qual o mundo seria salvo. A venda destas “cruzes do amor”, em tamanhos mais modestos de 7,38 metros ou de 73,8 centímetros, levou ao surgimento de vários destes itens na paisagem nacional, incluindo junto a algumas igrejas, embora o símbolo apocalíptico não seja reconhecido pela hierarquia da Igreja Católica.

Uma situação que não impediu que a comunidade dirigida pelo padre Joaquim Milheiro continuasse a difundir esta e outras alegadas visões, convidando para a propriedade em Requião alguns dos supostos videntes e servindo-se da tipografia que existe no local para publicar obras ligadas ao tema.