O Parlamento como mera encenação democrática
As lamentáveis cenas parlamentares recentes são uma amostra exemplar das traficâncias que os partidos – todos os partidos – tramam à nossa revelia.
O grotesco espectáculo político e parlamentar a que recentemente assistimos durante uma semana, em torno da contagem do tempo de serviço dos professores, com partidos a desdizerem-se no espaço de apenas 48 horas, revogando o que os mesmos tinham aprovado dois dias antes, sugere a pergunta: para que serve o Parlamento? E sugere a pergunta porque, como sempre, tudo o que era importante se passou por trás de uma impenetrável cortina de opacidade inviolável.
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O grotesco espectáculo político e parlamentar a que recentemente assistimos durante uma semana, em torno da contagem do tempo de serviço dos professores, com partidos a desdizerem-se no espaço de apenas 48 horas, revogando o que os mesmos tinham aprovado dois dias antes, sugere a pergunta: para que serve o Parlamento? E sugere a pergunta porque, como sempre, tudo o que era importante se passou por trás de uma impenetrável cortina de opacidade inviolável.
Os dirigentes do PSD e do CDS deram desculpas absurdas e esfarrapadas, que não esclareceram e não convenceram nada nem ninguém. Na verdade, tudo foi negociado em privado, ao abrigo do escrutínio público. Ora o Parlamento deveria ser antes de mais o lugar por excelência da “publicidade”. Em vez disso, e não só em Portugal, o Parlamento serviu – como aliás serve sempre – para ocultar conversações políticas de última hora, que os protagonistas da comédia precisam de manter secretíssimas – porque a política, tal como ela se pratica nas inacessíveis instância do poder, é geralmente uma infindável lavagem de roupa suja e de combinações indecorosas.
Isto não é de hoje, não é de ontem, e não é uma peculiaridade portuguesa. É geral, verifica-se em todos os países onde existem parlamentos. Os parlamentos tornaram-se largamente uma farsa que nós, passivos espectadores, fingimos levar a sério porque somos ciosos de liberdade. Desde meados do século XIX que os parlamentos têm má fama. Porque não sentimos que nos representam? Muita gente acha isso, e não faltou quem tentasse tratar a mazela inventando “mandatos imperativos”, círculos uninominais ou círculos de geometria vária e outros sistemas eleitorais que permitissem ao cidadão rever-se em quem votou. Mas isto não passa das ilusões de quem encara o Parlamento como uma Assembleia de Representantes (da vontade) dos eleitores.
A natureza da representação política constituiu sempre, no Continente europeu, um tema extremamente polémico, interligado com o problema de saber quais eram, em essência, as funções do Parlamento. (Ver o importante livro coordenado por D. Pires Aurélio, Representação política, 2019.) Nos alvores da Restauração Bourbon, operada sobre a derrota napoleónica em 1814-15, quando a França adopta instituições representativas e se dota de um “governo representativo”, o debate esteve ao rubro.
Neste debate destacaram-se Royer-Collard, mais conservador e monarquista, e, sobretudo, François Guizot, não menos conservador mas mais entusiasta do “governo representativo” e, pela extensão da obra publicada, o mais importante pensador do “doutrinarismo”: a doutrina da Carta Constitucional, que conciliava a soberania régia com a soberania nacional. A querela vinha de trás, desde a Assembleia Constituinte de 1789-91, quando Sieyès julgou arrumá-la com uma formulação habilidosa: “Ce n’est pas la nation que l’on constitue, c’est son établissement politique.”
Mas esta formulação nada nos diz sobre a relação entre eleições, representantes e Parlamento. Deixa, de facto, em aberto a possibilidade de interpretarmos as eleições como uma escolha dos que, no Parlamento, cumprirão a vontade dos eleitores. Por aqui se esgueirou e penetrou a noção democrática que entende a soberania como a vontade do povo expressa em urnas. Porém, a visão propriamente liberal do “governo representativo” nada deve a esta influência de Rousseau.
Para os primeiros liberais, saídos do caldo ideológico de 1789-91, não só a representação parlamentar não tem por objecto principal a transmissão de uma vontade do eleitorado, como não constitui o que essencialmente define o “sistema representativo”. Royer-Collard proclamou em 1816: “Le mot représentation est une métaphore.” Em 1819, Guizot decreta: “Ce qui caractérise les institutions que la France possède [...], ce n’est pas la représentation, ce n’est pas la délibération, c’est la publicité.” Encarando o “governo representativo” (parlamentar) sob este prisma, o seu objecto muda de natureza: “Il n’est plus question de régler une arithmétique des intérêts et des volontés, mais de recueillir, de concentrer toute la raison qui existe éparse dans la société.” E assim, por meio de discussões longas e difíceis, os deputados descortinariam algo que pode chamar-se a “Razão Pública”, outra expressão tão cara a Guizot.
A principal função do Parlamento seria, portanto, discutir e dirimir em público, guiados pela razão pública, os grandes problemas ou os grandes interesses nacionais. Representar passa a ser descobrir ou realizar a Razão Pública. Nesta concepção liberal, é evidente que a “publicidade” constitui um imperativo indispensável.
Mas isto era num tempo em que ainda realmente se discutia: ainda se trocavam argumentos tendo como única motivação “extrair” a Razão Pública, depositária do acerto e da verdade. Ao que assistimos há mais de cem anos para cá, não são discussões, são negociatas ou negociações entre partidos norteados pelo único propósito de calcular, contabilizar e ganhar vantagens políticas. Daqui nasce a necessidade imperiosa de um rigoroso secretismo, o que está nas antípodas da concepção de Parlamento tal como o liberalismo – e não a democracia – o idealizou.
O Parlamento provém, originariamente, de uma ideia ou de um pensamento liberal, e não democrático. Com o passar do tempo, contaminado pela democracia, o Parlamento transformou-se num palco, numa mera encenação desprovida de substância, pois tudo o que ali se passa é já o resultado dos “trabalhos” das comissões parlamentares que são, essas sim, os lugares onde tudo se negoceia e decide nas nossas costas.
As votações parlamentares são uma mera chancela de decisões anteriormente negociadas longe dos nossos olhos e ouvidos. Mas o Parlamento como palco de uma genuína discussão pública também pertence a um tempo em que se acreditava – a meu ver com razão – que a verdade não era arbitrária, ou seja, não era uma mera opinião. Pior: não era um simples interesse.
As lamentáveis cenas parlamentares que referi no início deste artigo são uma amostra exemplar das traficâncias que os partidos – todos os partidos – tramam à nossa revelia. E os respectivos líderes têm o despudor de falar como se representassem de facto o sentir, a preferência, a vontade do eleitorado inteiro. Porque terão tanto a esconder?