Bolsonarismo tenta lançar as ruas contra as instituições com que partilha o poder

Com uma direita dividida, é impossível prever o nível de mobilização das manifestações de apoio ao Presidente convocadas para este domingo. A tensão institucional deve continuar.

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Jair Bolsonaro chegou a sugerir que poderia participar pessoalmente nas manifestações deste domingo, mas acabou por recuar RICARDO MORAES/Reuters

Longe vão os tempos em que Jair Bolsonaro era recebido em apoteose em aeroportos por todo o Brasil, ou em que milhares e milhares de pessoas enchiam as avenidas das grandes cidades com camisolas com o rosto estampado do ex-capitão do Exército ou até com máscaras com a sua cara. Essa era a época da acirrada campanha eleitoral, em que o Brasil estava dividido entre o apoio a Bolsonaro e a repulsa às suas posições.

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Longe vão os tempos em que Jair Bolsonaro era recebido em apoteose em aeroportos por todo o Brasil, ou em que milhares e milhares de pessoas enchiam as avenidas das grandes cidades com camisolas com o rosto estampado do ex-capitão do Exército ou até com máscaras com a sua cara. Essa era a época da acirrada campanha eleitoral, em que o Brasil estava dividido entre o apoio a Bolsonaro e a repulsa às suas posições.

Hoje, o Presidente está em perda acelerada de popularidade e em pé de guerra com o Congresso e os tribunais. Os seus apoiantes convocaram manifestações para este domingo em todo o país para reanimar a dimensão anti-sistema que Bolsonaro representou durante a campanha eleitoral. A iniciativa é controversa até entre os grupos que apoiaram a sua eleição. Será que um Presidente pode lançar as ruas contra as instituições com as quais partilha o poder?

A manifestação de domingo foi baptizada pelo colunista do El País Brasil, Juan Arias, de “marcha da loucura”, comparando Bolsonaro ao imperador romano Nero, que incendiou Roma. “Essa ideia de incendiar os outros poderes que dividem com o Presidente a liderança e governabilidade do país nos faz lembrar como, já entre os romanos, imperadores como Nero usaram da artimanha de provocar incêndios de verdade, como o que destruiu meia Roma, para jogar sua responsabilidade sobre seus supostos inimigos.”

Não há certezas quanto ao nível de mobilização nas manifestações deste domingo. Cinco meses depois da tomada de posse de Bolsonaro, o movimento popular que o levou ao poder parece estar dividido, perdido em quezílias e longe de ver a sua agenda concretizada. A desmoralização atingiu o ponto alto na semana passada, quando as ruas brasileiras se encheram com as manifestações de estudantes, com apoio da esquerda, contra o congelamento do financiamento das universidades federais.

O jornal Estado de São Paulo citava uma fonte do Palácio do Planalto, sede da presidência, que dizia que nem os serviços de informação conseguiam antecipar a dimensão das manifestações, que estão a ser convocadas sobretudo através do WhatsApp, a rede de mensagens instantâneas de eleição no Brasil. É através de grupos, alguns com centenas de pessoas, que se movimentam as mensagens de apoio a Bolsonaro, tentando repetir o sucesso obtido durante a campanha eleitoral, na tentativa de cobrir em poucos minutos o vasto território brasileiro numa gigantesca rede comunicacional.

A presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffmann, avisou esta semana que as manifestações não devem ser subestimadas e pediu à oposição de esquerda para não baixar a guarda. “Eles não têm a mesma força da época do impeachment da Dilma [Rousseff, ex-Presidente] e nem das eleições de 2018, mas têm base e máquina”, afirmou a deputada.

Desde que foram convocadas, o tom da mobilização tem mudado. De início, as palavras de ordem faziam apelos ao “encerramento do Congresso e do STF [Supremo Tribunal Federal]”, apontados como os principais obstáculos à realização da agenda do Governo. Os ecos deste impulso anti-democrático ficaram patentes numa mensagem publicada nas redes sociais por um apoiante de Bolsonaro que denunciava um “país ingovernável”, em que as decisões do Presidente são “questionadas no Congresso ou na justiça”. O texto tornou-se um facto político depois de o próprio Bolsonaro o ter partilhado pelo WhatsApp, qualificando-o como “no mínimo interessante”, acrescentando um desabafo que prendeu a atenção dos analistas: “O Sistema vai-me matar.”

A mensagem não referia as manifestações deste domingo, mas a partilha foi interpretada como um aval do Presidente a esta mobilização, na qual ponderou participar. Acabou por recuar, mas nunca deixou de dar apoio àquilo que passou a chamar de “manifestação espontânea da população”.

Fogo amigo

Porém, estes já não são os tempos de campanha, em que o ódio ao PT e a promessa de uma “nova política” cimentaram a popularidade e a vitória de Bolsonaro. Vários grupos que tiveram papéis cruciais tanto no movimento pró-impeachment de Dilma Rousseff como, mais tarde, na eleição de Jair Bolsonaro, vieram demarcar-se da manifestação deste domingo, fazendo pairar a sombra de uma fraca mobilização. A deputada estadual Janaína Paschoal, a advogada que promoveu o processo de destituição de Dilma, que pertence ao Partido Social Liberal, de Bolsonaro, é uma das principais opositoras às iniciativas de domingo. “Essas manifestações não têm racionalidade. Não tem sentido quem está com o poder convocar manifestações. Raciocinem”, disse a deputada.

Também o Movimento Brasil Livre (MBL), um grupo nascido durante os protestos de 2013 e que cresceu no movimento pró-impeachment, descartou participar nas manifestações, tornando-se num improvável alvo da ira “bolsonarista” nas redes sociais – foram organizadas campanhas para que o canal de YouTube do MBL perdesse subscritores. Um dos seus dirigentes, o deputado federal dos Democratas (DEM), Kim Kataguiri, disse que os temas da manifestação são “anti-liberais e anti-republicanos” para justificar a oposição do grupo.

A clivagem sobre a participação nos protestos de domingo transformou-se numa guerra fratricida a céu aberto nas redes sociais. Olavo de Carvalho, guru da extrema-direita brasileira, chamou ao líder do MBL “Kim Katapiroca”, com o deputado a aconselhá-lo a “trocar as fraldas mentais”. O bate-boca estendeu-se ao seio do PSL, com as deputadas Joice Hasselmann e Carla Zambelli a trocarem acusações via Twitter.

A cisão da base de apoio de Bolsonaro pode deixar isolada a franja mais radical e ideologicamente motivada que compõe o bolsonarismo – e deve ser esse grupo a sair às ruas no domingo.

“Penso que essa divisão pode aumentar o radicalismo desse grupo que já por si é mais radical, especialmente na actuação nas redes sociais”, diz ao PÚBLICO o analista Oswaldo Amaral, professor de Ciência Política da Universidade de Campinas.

Em causa estão as enormes dificuldades que o Governo tem tido em negociar com as principais bancadas do Congresso para aprovar as suas iniciativas legislativas. O desafio mais exigente é a reforma do sistema de pensões, para a qual é necessária uma maioria qualificada nas duas câmaras, mas que continua numa marcha lenta que penaliza o Executivo. Mais atrasado ainda está o pacote “anti-crime”, um conjunto de medidas legislativas apresentado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro. Outra das pedras no sapato de Bolsonaro são as investigações à suspeita de envolvimento de um dos seus filhos, Flávio, que hoje é senador, num esquema de transacções ilegais de dinheiro quando era deputado estadual no Rio de Janeiro, e que também o liga ao grupo criminoso por trás do homicídio da vereadora Mariele Franco.

As manifestações de domingo não devem alterar esta dinâmica da vida política brasileira, diz Oswaldo Amaral. “Vamos continuar com a tensão entre o executivo e o legislativo. Se a manifestação for bem-sucedida, o Congresso vai-se sentir atingido, e provavelmente vai adoptar uma atitude defensiva. Se a manifestação não for bem-sucedida, o executivo, por sua vez, vai ficar enfraquecido”, conclui o analista.