Aos 630 anos, ainda há surpresas no Convento do Carmo
O restauro do portal gótico do convento, que aconteceu agora pela primeira vez, vem permitir uma nova leitura das figuras que decoram as colunas. Uma espécie de bactérias foi fundamental no trabalho de conservação.
Ainda há surpresas em Lisboa. Às vezes nem é preciso sair do centro para as encontrar. É o caso do portal gótico da Igreja do Carmo, que tem estado praticamente escondido à vista desarmada.
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Ainda há surpresas em Lisboa. Às vezes nem é preciso sair do centro para as encontrar. É o caso do portal gótico da Igreja do Carmo, que tem estado praticamente escondido à vista desarmada.
Pela primeira vez em muito tempo, o portal do século XIV teve obras de restauro profundo e vai ficar visível de uma forma inédita – pelo menos para os lisboetas deste século. “Se houve alguma intervenção, foi muito ligeira. Nunca houve oportunidade de fazer uma leitura tão profunda como agora será possível”, explica Célia Nunes Pereira, conservadora do Museu Arqueológico do Carmo e da Associação de Arqueólogos Portugueses, que mantém o edifício.
Empoleirada nos andaimes, Célia Pereira salienta pormenores nas várias figuras que tem à sua frente. São caras esculpidas na pedra calcária que formam um friso nos capitéis das colunas. Dali para cima o portal começa a descrever a curva que lhe dá a forma ogival e, ainda uns metros mais arriba, fica a ‘coroa’ do conjunto, uma grande flor que remata a fachada.
Visto do Largo do Carmo, com a pedra enegrecida ao longo de décadas, o portal talvez não parecesse muito impressionante. Agora que lhe foi restituída a cor branca original, aí estão observáveis os detalhes que nos últimos cem anos (pelo menos) ninguém viu. “Há aqui várias figuras que parecem claramente femininas”, comenta a conservadora, apontando para os penteados elaborados. Outras assemelham-se a animais, como macacos. “Temos uma mescla de figuras, algumas parecem vindas de África”, diz.
Célia Pereira, que já estudou exaustivamente a História do Convento do Carmo desde a sua fundação (1389) até à sua destruição (1755), tem nestas figuras um novo objecto de interesse. Não é particularmente estranho que existam ali representações ‘africanas’, mas há que perceber como chegaram. “Na Batalha há figuras bastante semelhantes a estas. Os frades que vieram para aqui provinham do Convento de Moura, sede dos carmelitas, onde havia uma boa biblioteca. E os frades eram muito zelosos de ter publicações que mostrassem como era o mundo naquele momento”, arrisca a conservadora.
O restauro do portal pôs também outra coisa em evidência: a rosácea do antigo convento, de que sobra metade da moldura e que vista de baixo não aparenta o tamanho que tem, era de enorme dimensão. “É uma moldura muito, muito grande, mas esculpida com muita elegância”, explica Célia Pereira no último andar dos andaimes, chamando a atenção para uns buracos rectangulares na pedra. Ali encaixava a estrutura de chumbo que suportava os vitrais.
“Isto era um jardim suspenso”, brinca Nuno Proença, técnico de conservação e restauro da empresa Nova Conservação, responsável pelos trabalhos. Apesar de dizer a frase em tom meio jocoso, não anda muito longe da verdade. Tanto a rosácea como vários sítios da fachada estavam repletos de vegetação e uma das primeiras tarefas foi retirá-la e garantir que não volta tão cedo. A pedra foi por isso sujeita a um processo que, fundamentalmente, reduziu a quantidade de superfícies planas para que a água da chuva não se concentre onde não deve e escorra até cá abaixo.
A intervenção foi demorada (nove meses, de Setembro a Maio) porque foi preciso analisar quase pedra a pedra e depois fazer a limpeza de todas, recorrendo a diferentes técnicas consoante o nível de sujidade. Nuno Proença diz que os construtores do convento fizeram “uma selecção extraordinária da rocha” e que “a execução é de grande rigor, daí o estado de conservação ser bastante bom”.
Ainda assim, uma exposição de 600 anos ao bulício da cidade deixa marcas. A poluição acumula-se e dá origem a crostas negras. “Sobre isso às vezes surge humidade e nascem fungos que deixam a pedra ainda mais negra”, explica Delgado Rodrigues, especialista em materiais rochosos. Mais do que tornar a pedra negra, os fungos provocam a sua deterioração, a sua progressiva transformação em pó.
Para contrariar este processo, que já estava bem avançado em algumas das figuras que Célia Pereira agora vai estudar, a equipa de restauradores usou uma técnica ainda relativamente pioneira, desenvolvida na Universidade de Granada, em Espanha. Chama-se bio-mineralização e, em termos simples, consiste em incentivar umas bactérias (Myxococcus xanthus) a produzir calcite, assim contribuindo para a solidificação da pedra. “Precisamos de milhões de bactérias, não pode ser só meia dúzia”, comenta Delgado Rodrigues.
O ‘empurrão’ que se dá às bactérias é a instalação de umas caixas em redor das zonas mais frágeis e deixá-las por cerca de um mês. Nuno Proença explica que “esta espécie precisa de escuridão” e, por isso, “as zonas são isoladas com controlo térmico e sem luz”, o que promove a sua expansão do interior para a superfície da pedra. Em Portugal, este é apenas o quarto local onde a tecnologia esteve em uso – e os resultados prepararam o portal do Carmo para enfrentar de novo a vida da cidade.