Constantino Xavier: “O Congresso foi incapaz de apresentar uma visão diferente da Índia”
O académico português de origem goesa Constantino Xavier considera que Modi vencia as eleições mesmo se não tivesse insistido nas questões identitárias do nacionalismo hindu.
O investigador da Brookings Institution India defende que foram as medidas económicas adoptadas pelo Governo de Narendra Modi, aliada à incapacidade do Congresso Nacional Indiano, os principais factores que explicam a vitória do BJP nas eleições legislativas. A prioridade na política externa do Governo indiano, diz Constantino Xavier, deverá ser a estabilização das relações com a China.
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O investigador da Brookings Institution India defende que foram as medidas económicas adoptadas pelo Governo de Narendra Modi, aliada à incapacidade do Congresso Nacional Indiano, os principais factores que explicam a vitória do BJP nas eleições legislativas. A prioridade na política externa do Governo indiano, diz Constantino Xavier, deverá ser a estabilização das relações com a China.
O nacionalismo hindu foi o grande trunfo da vitória de Narendra Modi?
É uma repetição do filme que vimos em 2014, em duas versões. A primeira versão é a do líder carismático, nacionalista, que oferece a uma Índia bastante jovem uma visão assente numa economia mais moderna, emprego para os jovens, e, acima de tudo, uma Índia mais igualitária, reflectindo o seu próprio percurso. O percurso de alguém que vem de fora de Deli, de um meio social simples, de uma casta baixa, que foi vendedor de chá. Ele conseguiu veicular muito bem essa imagem nas suas campanhas, e portanto uma Índia em que os jovens querem ter a mesma ambição.
A segunda versão deste filme é representada por Raul Gandhi, alguém muito mais novo do que Modi, mas sem conseguir fazer isso jogar a seu favor. Sem experiência, sem vocação política, sem carisma, que é algo muito importante para o eleitorado jovem, vindo de uma das mais antigas dinastias políticas do mundo, de um partido dos mais antigos do mundo, bisneto de um primeiro-ministro indiano, portanto representando uma Índia antiga. Vimos hoje a continuidade da linha governativa de Narendra Modi e do BJP, e a incapacidade do principal partido da oposição, que esteve no poder 50 dos 70 anos [desde a independência]. Uma incapacidade total de apresentar uma imagem diferente da do BJP, e uma visão diferente para a Índia.
Na campanha de Modi, a economia esteve menos presente e foi mais assente na afirmação dos valores do nacionalismo hindu.
Uma coisa é a campanha, outra é o Governo de Modi. Na campanha, a linha identitária esteve presente, sem dúvida, mas não só. O segundo aspecto foi a linha securitária, a resposta forte aos ataques terroristas, os testes de satélites, a representação de Modi como o grande líder externo. Estas duas dimensões estiveram na campanha e conseguiram cimentar a vitória do BJP. Mas penso que mesmo sem essas duas linhas, o BJP teria conseguido sair vitorioso. Pela simples razão de que a economia está bem, está a crescer 7%. Os desafios são enormes: o Governo vai ter que gerir nos próximos cinco anos uma economia que cria um milhão de empregos por mês. Vai ter que dar voz a essas ambições da classe baixa e jovem, que quer incorporar a classe média. Em termos económicos, seja a nível conjuntural, seja ao nível das reformas internas, o Governo Modi tem conseguido gerir a economia de forma no mínimo satisfatória. Houve casos concretos na história da democracia indiana em que a economia falhou e as questões identitárias não foram capazes de compensar isso. Percebo essa linha que tem sido seguida mais pela imprensa internacional, dado que existem vários líderes autoritários pelo mundo, mas na realidade o factor fundamental é que se trata de um líder carismático, de um Governo estável, que conseguiu gerir a economia de forma satisfatória, e que complementou isso com um namoro com as questões identitárias e securitárias. Essas também são importantes. O Congresso não tem sido capaz de oferecer uma alternativa, embora haja várias ideias de Índia. Mas esta visão de Modi foi a que conseguiu sair vitoriosa em 2014 e parece satisfazer o eleitorado. Até que ponto esse namoro com a questão identitária e nacionalista pode levar a maior extremismo, violência, divisão religiosa, é uma questão em aberto. Nas eleições de 2014, houve uma quantidade significativa de muçulmanos a votar no BJP. Não é preciso dizer muito mais. Como é que uma comunidade supostamente discriminada, torturada, pode votar no BJP?
Modi afirma-se como um líder consensual a nível nacional, ultrapassando as habituais divisões regionais?
É impossível ser consensual na Índia. A questão é: será que Modi vai dividir a Índia? Alguém que consegue a maior reeleição das últimas décadas não me parece que esteja a dividir. Parece que há alguma coisa que está a unir as pessoas. Não acho que a questão identitária seja a mais importante. O maior desafio para a democracia indiana é o partido do Congresso saber reinventar-se como um partido nacional que agregue o centro-esquerda e apareça como uma alternativa a Modi.
Com um mandato reforçado, o que se pode esperar de Modi para os próximos anos?
A linha programática vai ser de continuidade, mas houve dois factores de aprendizagem por parte do BJP, que sugerem mudanças. Não nos esqueçamos que em 70 anos de democracia o BJP só formou Governo três vezes. É um partido que tem um grande défice de quadros tecnocratas, e essa é uma experiência que só se adquire no Governo. O Congresso tem todos esses anos de história do seu lado, tem essa capacidade, mas não consegue ligar-se ao eleitorado. Com o BJP passa-se exactamente o contrário: é formidável em termos de comunicação e ligação ao eleitorado, mas tem um défice em termos de quadros técnicos. E por isso as margens extremistas ganham espaço, onde há défice intelectual. E há também a aprendizagem do próprio Modi, que veio de um estado indiano que é considerado pequeno na grande Índia, e gerir um estado indiano é muito diferente de gerir um país com 1300 milhões de pessoas, e parece-me que ele está a perceber que as coisas não vão lá apenas com a liderança, com a centralização do poder nele, mas que vai ter que investir na infraestrutura estatal do Governo.
Pode esperar-se uma maior dureza da Índia em relação ao Paquistão, tal como aconteceu após o ataque em Caxemira em Fevereiro?
Na realidade não vejo grandes diferenças de política de externa entre os grandes partidos indianos. Mas há uma mudança estrutural que Modi trouxe, que é focar menos no Paquistão e mais na China. Foram gastos muitos recursos em governos anteriores para tentar resolver a situação com o Paquistão, e Modi apercebeu-se que não funcionou e, de certa forma, desistiu dessa abordagem e redireccionou os esforços para aquilo que é realmente o maior desafio externo da Índia, que é a assertividade da China. Estamos a falar dos dois maiores países do mundo que nem sequer têm um entendimento em relação à sua fronteira, e que até já travaram uma guerra por causa disso. Modi tem tentado encontrar alguma estabilidade nas relações com a China e penso que será esse o objectivo que vai tentar alcançar: não depender da China, mas sem a hostilizar. Vai ser difícil e vai requerer vários equilíbrios, em particular um em que Modi tem investido, que é nas relações com outras democracias na Ásia, como o Japão, mas também com a União Europeia e os EUA.