O país em que o populismo não dá votos
O problema não está nas atitudes. Está nas condições. Se estas mudarem, as atitudes lá estarão, prontas para serem exploradas pelos populismos. E, então, pode ser que dêem votos.
O país em que o populismo não dá votos. Foi assim que António Guterres se referiu, com orgulho, a Portugal. E talvez tenha razão. Numa Europa em que os populismos estão em alta por todo o lado, no Leste e no Ocidente, na oposição e no governo, Portugal tem sido a excepção. Mas será sempre assim? Estará Portugal a salvo dos populismos?
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O país em que o populismo não dá votos. Foi assim que António Guterres se referiu, com orgulho, a Portugal. E talvez tenha razão. Numa Europa em que os populismos estão em alta por todo o lado, no Leste e no Ocidente, na oposição e no governo, Portugal tem sido a excepção. Mas será sempre assim? Estará Portugal a salvo dos populismos?
A verificar-se nas próximas europeias o que dizem todas as sondagens, continua a confirmar-se o excepcionalismo português. Os partidos do sistema continuam a ocupar todo o espaço político e os populistas dificilmente conseguirão eleger um deputado que seja. Nem Marinho Pinto nem André Ventura parecem chegar a Bruxelas. Porquê, então, este fracasso do populismo em Portugal?
O populismo não é uma ideologia como as outras. Ao contrário do liberalismo, do fascismo ou do comunismo, não tem uma visão global do mundo, nem uma agenda política completa. É uma ideologia estreita, não é auto-suficiente e, por isso, surge associada a outras ideologias. Ao socialismo, à esquerda, e ao nacionalismo à direita. Mas seja uma coisa ou outra, explora, sempre, um conjunto de questões que as estruturas sociais e as conjunturas políticas oferecem e que constituem o núcleo duro das suas políticas: a desigualdade e a austeridade, à esquerda; a imigração e os refugiados, à direita; a corrupção e o eurocepticismo, à esquerda e à direita.
Em qualquer dos casos, afirmam-se sempre pela negativa. São sempre contra qualquer coisa. São, essencialmente, “anti”: anti-austeridade, anti-imigração, anti-corrupção, anti-Europa. Se a estas questões juntarmos a do regionalismo, teremos o panorama completo das “causas” populistas. Mas para que as “causas” sejam credíveis é preciso que as condições objectivas as favoreçam. Ora, no caso português, não favorecem.
Primeiro, o regionalismo. Com fronteiras definidas e estáveis há mais de 800 anos, uma relativa unidade étnica e linguística e a questão das autonomias regionais resolvida, Portugal não tem identidades subnacionais, que abram espaço ao populismo regionalista ou separatista, como no caso da Liga de Salvini em Itália.
Segundo, a desigualdade. Apesar do coeficiente de Gini, o indicador que mede a desigualdade económica (Eurostat), ter vindo a descer desde 2005, Portugal está ainda entre os cinco países mais desiguais da UE. Esta é uma condição económica e social objectiva que abre campo ao populismo de esquerda. O Podemos em Espanha e o Syriza na Grécia são os melhores exemplos. Não foi o caso, em Portugal. E pela simples razão que os partidos que poderiam desempenhar tal papel são partidos do sistema e, hoje, associados à esfera do poder através da “geringonça”.
Terceiro, a imigração. Neste ponto, Portugal está protegido pela geografia, longe dos fluxos massivos do Mediterrâneo ou dos Balcãs. O ratio entre a população total e o número de imigrantes é dos mais baixos da UE. Mas, mais do que isso, no índice das políticas de integração de imigrantes (MIPEX 2015), Portugal e a Suécia estão entre os países com melhor performance. E o facto de a comunidade islâmica, maioritariamente de países africanos de expressão portuguesa, não ser numerosa e estar integrada e nunca se terem verificado atentados terroristas, reduz a margem de manobra ao discurso de extrema-direita, anti-imigrante e anti-islâmico, como na Itália de Salvini ou na França de Le Pen.
Quarto, a corrupção. Embora no índice de percepção da corrupção (Transparência Internacional 2018) Portugal esteja a meio da tabela e tenha a melhor performance da Europa do Sul, este é um tema que, depois dos casos envolvendo banqueiros e políticos, está muito presente na opinião pública e é potenciado por certa imprensa, ela própria com uma agenda populista.
Quinto, a Europa. Desde a integração europeia, o apoio da opinião publica portuguesa à UE é, tradicionalmente, alto. Mas o Eurobarómetro mostra flutuações com os benefícios e os sacrifícios. Abaixo da média europeia durante a austeridade para voltar a cima desde 2016.
Finalmente, o sistema político. Uma crise de representação quiçá menos grave que em outros países, a fuga para a abstenção e um sistema de partidos estável não abrem grande espaço a novos partidos.
Quer isto dizer que os portugueses não são racistas, que toleram melhor a desigualdade e a corrupção? Que apoiam incondicionalmente a Europa e votam sempre nos partidos do sistema? Não. O problema não está nas atitudes. Está nas condições. Se estas mudarem, as atitudes lá estarão, prontas para serem exploradas pelos populismos. E, então, pode ser que dêem votos.