Cidadãos ponderam travar construção de prédio da Portugália nos tribunais
A ausente, mas sempre presente na discussão, foi a Câmara de Lisboa, ainda que lá tenha estado o seu vice-presidente, que se manteve em silêncio. Projecto está em discussão pública até 18 de Junho e, caso se mantenha como está, uma associação de moradores pondera avançar com uma acção judicial.
Foram mais de quatro horas de um debate aceso em que ficou claro que os moradores da zona não querem ver construído um prédio com 16 andares no quarteirão da Portugália, em Lisboa. Se se mantiver como está a proposta de construção do edifício com 60 metros ao lado da antiga Fábrica de Cerveja, um colectivo de moradores de Arroios pondera avançar mesmo para os tribunais para tentar travar a obra.
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Foram mais de quatro horas de um debate aceso em que ficou claro que os moradores da zona não querem ver construído um prédio com 16 andares no quarteirão da Portugália, em Lisboa. Se se mantiver como está a proposta de construção do edifício com 60 metros ao lado da antiga Fábrica de Cerveja, um colectivo de moradores de Arroios pondera avançar mesmo para os tribunais para tentar travar a obra.
Luís Castro, morador em Arroios há 53 anos, e membro do colectivo Vizinhos de Arroios, deixou clara essa intenção. “É como meter o Rossio na Rua da Betesga”, disse, criticando a volumetria do prédio, tendo em conta a largura da avenida. É por isso que em cima da mesa desta associação, que integra um colectivo maior, os Vizinhos de Lisboa, está o recurso às vias legais para impedir o avanço do projecto.
Foi a segunda sessão de um debate público convocado pela autarquia, onde nesta terça-feira, no Mercado Forno do Tijolo, em Arroios, se discutiu um projecto que tem dado polémica porque inclui a construção de um prédio de 60 metros, que faz parte de uma obra que pretende a requalificação daquele quarteirão que hoje está devoluto. O projecto tem parecer positivo dos serviços de urbanismo da Câmara de Lisboa, mas terá ainda de ser votado pelo executivo municipal.
O que os arquitectos propõem é a construção de uma torre assente num bloco — uma espécie de L ao contrário, que é o objecto da discórdia. O principal argumento dos arquitectos é o de que a construção em altura permitirá ganhar espaço público. José Mateus, do gabinete ARX, que desenhou a proposta, insistiu na ideia de que esta é “única oportunidade para criar espaço público” em dois quilómetros de avenida. Mas que espaço público é este? São cerca de 3000 metros quadrados, segundo disse, que, da forma que estão desenhados, criarão “espaços ajardinados — dois grandes canteiros e de atravessamento” para a Rua António Pedro, e onde se poderá, por exemplo, colocar esplanadas. O paisagismo está entregue à empresa NPK, que ganhou o concurso para as obras na Praça de Espanha, que propõe ainda que as coberturas dos novos blocos sejam cobertas com vegetação.
No entanto, o argumento não colheu junto da maioria dos munícipes que intervieram na sessão e que se queixaram da sombra que será criada pelo novo edifício, temendo o seu impacto se for visto de miradouros como o da Penha de França.
Os moradores deixaram claro que não estão contra a construção naquele terreno, que é de resto um espaço de insalubridade há anos, mas admitem que a opção pelo edifício de 60 metros é “desenquadrada” de todo o ambiente da zona. “Existem alternativas. Não tem de ser um espaço fechado ou um buraco aberto com uma torre de 16 andares”, sublinhou Leandro Ribeiro, morador de Arroios.
“Aquela torre de 16 andares não entra na cabeça de ninguém. Os arquitectos dizem que defendem a cidade, mas o que está aqui em causa é a defesa dos interesses do promotor”, defendeu Joaquim Camacho, que tem um apartamento num prédio em frente do quarteirão, sublinhando a sombra que este fará sobre o seu prédio, caso a construção avance.
Perante a especulação imobiliária dos últimos anos, uma das questões mais levantadas pelos munícipes foi se aquele empreendimento será de facto dirigido às classes médias. O representante do promotor, José Gil, explicou que em cima da mesa estão 85 habitações para venda e um programa de arrendamento dirigido a jovens e idosos. “Quando falamos de programas de arrendamento, toda esta diversidade dos diferentes usos é o que permite a um empreendimento garantir a sua sustentabilidade”, disse, não avançando contudo com valores de quanto custarão essas casas e rendas.
“Decisão política”
Durante todo o debate, as atenções voltaram-se para a Câmara de Lisboa, que se manteve em silêncio, com os munícipes a pedirem que a decisão final do projecto não seja uma “decisão política” e se pense nos moradores. Para aquele quarteirão, que confina entre a Almirante Reis, a Rua António Pedro e a Rua Pascoal de Melo, esteve já aprovado um projecto em 2004. O alvará de obras foi emitido em 2007 e as obras ainda chegaram a arrancar, com algumas demolições, mas pararam em 2009. O promotor, o Fundo Sete Colinas, gerido e representado por Silvip — Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, não quis continuar com o projecto e promoveu um novo concurso, em 2016, no qual o gabinete ARX foi o vencedor.
O director do Departamento de Projectos Estruturantes da autarquia, Eduardo Campelo, garantiu que o projecto “segue todas as determinações do Plano Director Municipal (PDM)” e explicou que o debate público existe por causa da aplicação de um artigo do PDM que permite a utilização de créditos de construção — na prática, se o promotor se comprometer a criar mais oferta de estacionamento para os residentes, se integrar conceitos bioclimáticos e de eficiência energética ou criar e infra-estruturas ou espaço público, o município permite a construção de mais área —, que, neste caso, permitirão a construção de mais 11 mil metros quadrados.
Questionado sobre a rapidez com que o projecto foi apreciado — terá dado entrada no início do ano —, Eduardo Campelo justificou que, como houve já um projecto aprovado para os terrenos, havia conhecimento sobre o mesmo. “O processo não se iniciou em Janeiro. Nós já conhecíamos [o processo]. O prazo poderá parecer muito curto, mas havia conhecimento [do projecto]”, disse.
“O edifício vai ser um ovni naquele espaço"”
Voltando à discussão sobre o espaço público que será criado, o arquitecto Tiago Mota Saraiva sublinhou que o que os arquitectos estão ali a tentar criar é uma espécie de “praça pública” como a da sede da EDP, que “não é um espaço público” ou, pelo menos, não é utilizada como tal.
Luís Castelo, também morador em Arroios, sugeriu que fosse criado um jardim — o Jardim Portugália —, uma vez que faltam de facto espaços verdes, de descompressão, naquela zona da cidade.
Quanto à sombra que será criada pelo novo edifício sobre os prédios adjacentes, José Mateus respondeu que esta é “dinâmica” e que os prédios em volta não sofrerão muito com isso, uma vez que a Almirante Reis está voltada para sul. “Os atravessamentos que criamos favorecem o aparecimento de luz e planos de reflexão da incidência solar”, acrescentou.
No que respeita ao impacto das vistas dos miradouros, o arquitecto repetiu que o impacto gerado pela obra lhes parece “bastante aceitável” e que é sempre bom ver “novos elementos contemporâneos” inseridos na paisagem, já que “a cidade é um organismo vivo”.
“Ainda não consigo entender como é que esta volumetria se insere nesta paisagem. Este projecto entra como um ovni naquele espaço”, referiu, por sua vez, Miguel Pinto, morador em Arroios, e membro do entretanto criado Movimento Stop Torre 60m Portugália, que lançou uma petição contra a construção da torre que, neste momento, ultrapassou as 1100 assinaturas. “Quando olho para o Miradouro das Necessidades e vejo o hospital que meteram lá em baixo... Aquela vista já não existe, nem vai continuar a existir”, continuou Miguel Pinto, sugerindo à autarquia a elaboração de um plano de pormenor para a Avenida Almirante Reis que junte nessa discussão quem já estudou a rua, arquitectos e urbanistas.
“Para que é que serve o PDM se agora vale tudo?”
Sara Carvalho Fernandes, engenheira do ambiente, criticou o facto de toda a área de construção ser impermeável, tecendo ainda várias críticas sobre como todo o processo foi conduzido e sublinhando que as “necessidades reais” da população não foram ouvidas. “Há uma ideia de cidade muito conceptual, mas não me parece ter havido um levantamento das necessidades reais da população do bairro”, disse. E criticou ainda o regime de excepção levantado para este projecto. “Para que é que serve o PDM se agora vale tudo?”
E deixou uma crítica ao que o promotor chama “opções para a classe média”. “O co-living é um conceito que está muito na moda, que está a ter muito sucesso na Europa Central, e existe porque as pessoas estão cada vez mais pobres”, frisou.
Os arquitectos assumiram que há pontos do projecto que poderão ser afinados depois deste período de consulta pública, que estará aberta até 18 de Junho, e que pretendem que seja feito mais um debate, desta vez na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa.
No final do debate e depois de as críticas terem sido apontadas à autarquia pela forma como geriu o projecto, nem o vice-presidente, João Paulo Saraiva, nem a presidente da Junta de Arroios, Margarida Martins, se quiseram pronunciar sobre o mesmo. Aos jornalistas, a autarca apenas disse o que já dissera no início do debate: que estaria atenta a tudo o que fosse dito pelos munícipes. Uma coisa é certa: o debate em torno da “torre” da Portugália está longe de estar terminado.