Um striptease geográfico para contar o drama dos refugiados
Invisible Lands é um espectáculo de enorme delicadeza. O São Luiz recebe-o até 23 de Maio, integrado no Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas de Lisboa.
Ishmael Falk é um marionetista israelita; Sandrina Lindgren é uma bailarina sueca. Há alguns anos que trabalham juntos enquanto Livsmedlet Theatre, na Finlândia, tentando encontrar formas de aliar as suas linguagens de origem na construção de espectáculos que imaginem uma outra maneira de contar uma história. Era nisso que trabalhavam, em 2015, experimentando dispor figuras em miniatura sobre paisagens corporais – ou seja, transformando os corpos dos dois num palco que, pelas suas características físicas, podia transformar-se em montanha, estrada, mar, deserto. “Percebemos que tínhamos encontrado um material bastante rico e que nos sugeria uma história de viagem”, conta Ishmael Falk ao PÚBLICO, dias antes de apresentar Invisible Lands no Teatro São Luiz, em Lisboa, de 21 a 23 de Maio, integrando o Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas (FIMFA).
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Ishmael Falk é um marionetista israelita; Sandrina Lindgren é uma bailarina sueca. Há alguns anos que trabalham juntos enquanto Livsmedlet Theatre, na Finlândia, tentando encontrar formas de aliar as suas linguagens de origem na construção de espectáculos que imaginem uma outra maneira de contar uma história. Era nisso que trabalhavam, em 2015, experimentando dispor figuras em miniatura sobre paisagens corporais – ou seja, transformando os corpos dos dois num palco que, pelas suas características físicas, podia transformar-se em montanha, estrada, mar, deserto. “Percebemos que tínhamos encontrado um material bastante rico e que nos sugeria uma história de viagem”, conta Ishmael Falk ao PÚBLICO, dias antes de apresentar Invisible Lands no Teatro São Luiz, em Lisboa, de 21 a 23 de Maio, integrando o Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas (FIMFA).
Nesse mesmo período, a crise dos refugiados no Mediterrâneo invadia os noticiários com uma intensidade a que perceberam que não podiam escapar. Até pela própria história pessoal de Ishmael – nasceu em Israel, mas metade da sua família é oriunda da Polónia, enquanto a outra metade vem do Iraque, o que povoa a sua árvore genealógica de relatos de gente em movimento, ou mesmo em fuga – e pela dinâmica dos lugares onde tinham um dia-a-dia. “Na Finlândia trabalhei também num centro de refugiados e fui um activista muito enérgico contra a ocupação da Palestina. Esta era, por isso, uma temática muito presente na minha vida e senti que era bom poder reagir-lhe, uma vez que tínhamos encontrado a ferramenta artística certa para o fazer.”
Invisible Lands começa com um pequeno palco vazio. Há uma série de objectos cuidadosamente arrumados, à espera de serem chamados ao espectáculo. Ishmael e Sandrina entram sob o som de bombardeamentos e rajadas de metralhadora. E fumam um cigarro, enquanto esperam, enquanto decidem o que fazer. Só depois começam, aos poucos, a despir-se, com o propósito de criar diante do público aquilo a que chamam um “striptease geográfico”. É por aí que começam a desenhar uma debandada muito silenciosa – a debandada dos pequenos seres que percorrem os seus corpos em situação de absoluta fragilidade. A escala, reconhece o marionetista, lembra-nos que estas figuras de plástico são, afinal, “pessoas minúsculas que têm de atravessar continentes, muitas vezes a pé ou pelo mar, frequentemente em circunstâncias muito perigosas”. Minúsculas, claro, apenas aos olhos de quem assiste – na plateia do espectáculo, ou no sofá em frente à televisão, testemunhando imagens reais. A pele dos dois intérpretes, cenário sobre o qual se vão construindo todas as situações, não nos deixa esquecer que há vida em cada um destes passos, que estas histórias estão impressas em corpos reais.
Há uma enorme delicadeza na forma como os dois emprestam os seus corpos a esta narrativa, transformando braços, barrigas, ombros e cabeças em lugares de encontro e negociação para transportes clandestinos, caminhos secundários e pouco recomendáveis que se percorrem em viagens nocturnas, fronteiras que dividem territórios com arame farpado, barcos precários que se aventuram em mares agitados. E essa é, reconhece Ishmael, outra perspectiva que lhes interessa: num corpo, não existem fronteiras, não há braços em guerra com pernas, dedos aliviados porque as nódoas negras calharam antes a um joelho. Há um todo, que não se concebe nem se quer ver desmembrado.
Uma outra imagem, no entanto, está sempre a ser colocada em cena, sugerindo que por trás destas vidas, muitas delas perdidas, existem, algures noutro lugar, corpos humanos que sustentam o trânsito desesperado de quem luta pela sobrevivência. Ishmael e Sandrina não querem explicitar as suas opções nem apensar qualquer slogan à obra que desenvolvem em Invisible Lands, mas torna-se impossível não ler nos seus corpos uma responsabilização colectiva. “Há muita politização”, acusa Falk, sublinhando o essencial: “São pessoas reais que estão nestas situações e que precisam de ajuda. Primeiro temos de acudi-las; só depois de procurar a causa destes problemas.”
Aquilo que Ishmael e Sandrina fazem em Invisible Lands é justamente acudir a estas histórias e a estas vidas, reclamando-as com os seus corpos para também se responsabilizarem por elas. Qualquer uma que tombe ao longo deste espectáculo é culpa sua – é culpa nossa.