Steve Bannon e a Cartuxa europeia

A Cartuxa de Trisulti foi entregue pelo Governo de Itália ao Dignitatis Humanae Institute, o “braço” italiano de Steve Bannon e o “braço” político do cardeal Raymond Leo Burke. A Santa Sé não toma posição oficial sobre o assunto.

Foto
A entrega da Cartuxa de Trisulti está sob investigação DR

Steve Bannon já não poderá, tranquilamente, fazer da Cartuxa de Trisulti a sede da sua academia para ensinar o populismo, criar líderes políticos para destruir o actual sistema globalista e construir uma União Europeia nacionalista e de direita.

O caso tem vindo a ser denunciado ao longo dos meses por vários jornais, muitas pessoas até têm saído à rua “abraçando” a Cartuxa de Trisulti, um mosteiro beneditino na vila de Collepardo — a cerca 100 quilómetros de Roma —, consagrado em 1211 e monumento nacional desde 1879, para a proteger dos desígnios subversivos do ex-estratego de Donald Trump.

Hoje, são o Tribunal de Contas, o advogado do Estado e a Procuradoria da República a investigar sobre este caso desmazelado, que chegou à atenção mundial feito de enredos e conivências entre sectores da política e da igreja a altos níveis: o escândalo da concessão do antigo mosteiro a personagens dúbias, mas de clara matriz fundamentalista católica e de extrema-direita.

Duas interpelações parlamentares do partido Sinistra Italiana (de esquerda), duas marchas e duas mil assinaturas — já entregues ao Ministério da Cultura italiano — foram as armas da sociedade civil para despertar a opinião pública nacional e internacional sobre um abuso que se vinha perpetrando há largos meses.

Três homens na Cartuxa

Desde Fevereiro do ano passado, a Cartuxa de Trisulti tinha sido entregue pelo Ministério da Cultura da República italiana ao Dignitatis Humanae Institute (DHI), uma emanação dos teocons americanos, sendo, na prática, o “braço” italiano de Steve Bannon, e o “braço” político do cardeal Raymond Leo Burke.

Steve Bannon, artífice reconhecido da campanha eleitoral de Donald Trump, era também presidente executivo do influente site noticioso americano, de extrema-direita, Breitbart News. Mesmo tendo sido afastado dos dois cargos, Bannon tem continuado a apresentar o pensamento de Trump como o seu principal ponto de referência, exaltando-o como “um dos poucos líderes políticos que defendem a sobrevivência do Ocidente cristão contra a esquerda niilista”. Levou pela Europa o seu pensamento político, criou o The Movement, movimento transnacional que, segundo as suas intenções, deve reunir todas as direitas europeias populistas, entre as quais a Liga de Matteo Salvini, considerado por Bannon como uma das “duas figuras políticas mais importantes do mundo”, juntamente com o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro.

As posições supremacistas de Bannon são partilhadas pelos dois políticos italianos que constam no topo do DHI: Luca Volonté e Rocco Buttiglione. Partilhando das mesmas posições teocons extremistas, também o presidente honorário do DHI, o cardeal Renato Raffaele Martino, convidou Bannon a falar no Vaticano e, em 2014, escreveu uma carta (publicada no website do DHI) em que pedia ao Papa Francisco para pressionar o então ministro da cultura italiano, Dario Franceschini (do Partido Democrático), a entregar a Cartuxa de Trisulti ao DHI.

Em Janeiro deste ano, o cardeal Martino pediu demissão e a presidência honorária passou para o cardeal Raymond Leo Burke, e o seu lugar no conselho de administração do DHI passou para Steve Bannon, o principal financiador da associação.

Foto
Raymond Burke é defensor e praticante do rito tridentino.

O estratego americano é mentor ideológico do segundo homem-chave desta história, o britânico Benjamin Harnwell que, como fundador, director, representante legal e presidente do Board of Trustees do Dignitatis Humanae Institute, se tornou o inquilino oficial da Cartuxa de Trisulti, partilhando a casa com o único monge que ainda aqui vive: Dom Ignazio, de seu nome Mario Rossi, com 83 anos, que nestes últimos anos tem sido refém, malgré lui, desta história. Foge dos jornalistas, mas lança farpas contra o abade de Casamari que “entregou” a Cartuxa “a essa gente…” Não quer ser “despejado” do sítio onde viveu a vida inteira e quer morrer na “sua Cartuxa”.

O terceiro homem é o cardeal Raymond Leo Burke, amigo de Bannon e confidente de Harnwell. Defensor e praticante do rito tridentino, ex-arcebispo de St. Louis, já presidente do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, onde ficou confirmado apenas como membro; já foi elemento da Congregação da Causa dos Santos, hoje é apenas patrono do Soberano Militar Ordem de Malta, um cargo meramente simbólico. Os comentadores do Vaticano dizem que as sucessivas quedas hierárquicas dos cargos se devem às suas posições ultraconservadoras.

Burke, além de ser um dos principais expoentes da ala ultraconservadora da Igreja, é também um dos principais opositores do Papa Francisco. Em 2016, foi um dos quatro cardeais que assinaram os Dubia, o documento em que se contesta a decisão do Papa Francisco sobre a legitimidade da comunhão aos divorciados recasados, e que, em conjunto com o cardeal alemão Walter Brandmüller, por ocasião da conferência sobre a pedofilia, escreveu uma carta aberta aos presidentes dos episcopados, criticando a escolha do Papa Francisco em focar o debate apenas na pedofilia e não sobre a homossexualidade presente na Igreja.

Centro de espiritualidade

A Cartuxa de Trisulti tinha sido entregue aos cistercienses de Casamari em 1947 e aqui se firmou um centro de espiritualidade e de difusão da ervanária de tradição monástica. No início do processo que agora decorre, ficaram apenas quatro monges, idosos e doentes, cujo destino seria regressar ao convento de origem e a Cartuxa voltaria à protecção do Estado. O definhamento das grandes ordens religiosas medievais vai deixando um vazio muito difícil de preencher no património monumental sagrado e tornado propriedade pública.

Para evitar a decadência e não tendo capacidade económica para assegurar a manutenção deste património (na sua maior parte entregue às ordens religiosas), a concessão dos bens foi a estratégia possível encontrada pelo Estado.

Em Outubro de 2016, o Ministério da Cultura italiano, chefiado pelo ministro Dario Franceschini (Partido Democrático), lança um edital sobre 13 bens do Património Cultural do Estado. Entre eles, a Cartuxa de Trisulti.

Apenas duas organizações participaram no concurso, o DHI e a Academia Nacional das Artes do Castelo Petroro de Todi, comunidade de monges e laicos vegetarianos, das Igrejas ortodoxas. Esta última foi excluída por falta de documentação, dizem no ministério. “Na realidade, a decisão já está tomada”, comentou, em Janeiro de 2018, o padre Massimiliano, na altura chefe da Abadia di San Martino, sede da Academia.

Durante os meses que se seguiram, o Ministério da Cultura pediu mais documentação a asseverar a gestão de um bem público ou privado no quinquénio anterior à data do edital. O padre Massimiliano não pôde participar porque ficara detido em Maio de 2018 por fraude fiscal… e o DHI apresentou a carta de Eugenio Romagnuolo, abade de Casamari (a casa-mãe dos cistercienses), datada de 2015, em que se garantia a entrega do Museu de São Nicola, em Trisulti, para a gestão do DHI. Só que o museu nunca existira e, além disso, a carta foi apresentada só em 2017. E ainda mais curiosa é a presença do abade Eugenio Romagnuolo no conselho de administração do DHI.

Por outro lado, a DHI apresentou uma declaração de “coerência do plano financeiro”, por parte de um instituto com sede em Gibraltar do Jyrske Bank, banco dinamarquês envolvido numa série de escândalos financeiros no mercado relativamente às normas antibranqueamento e evasão fiscal. Será por causa do grande eco internacional, mas o próprio banco declarou como falsa a carta de garantia apresentada pela DHI.

Apesar disso, o Ministério declara o DHI vencedor do concurso, e em Fevereiro de 2018, é assinada a concessão por 19 anos, com uma renda de 100 mil euros por ano, que o DHI poderá deduzir dos custos de reestruturação. A oferta económica deve ter pesado, mas as relações políticas têm pesado ainda mais… Em simultâneo, a paisagem de uma degradação acentuada continua muito visível nos telhados destruídos ou em muros em risco de colapso, onde o património convive com a fixação por fita-cola.

A escola do populismo

A partir da vitória eleitoral da Liga e do Movimento 5 Estrelas, a 4 de Março do ano passado, Steve Bannon declarou-se mentor da ideia de um Governo concertado entre os dois partidos populistas que governam a Itália desde Junho. Inúmeras entrevistas aos principais meios de comunicação social, dão conta do seu projecto de criar na Cartuxa de Trisulti “uma escola para guerreiros da cultura”, para formar uma geração de populistas. Em suma, criar “pequenos Salvinis” e “pequenos Orbáns”.

Benjamin Harnwell, testa-de-ferro de Steve Bannon e já exibindo no seu curriculum o estatuto de homem de mão de um deputado conservador em Bruxelas, conta que o projecto inicial passava por uma academia para a Breitbart News, e finalmente “chegou este maravilhoso Governo” que representa perfeitamente a missão do DHI. Segundo ele, os partidos nacionalistas e populistas são hoje quem defende a dignidade humana baseada no reconhecimento de que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus. “Há uma sinergia natural entre o que estamos a fazer e estes partidos”, diz Harnwell.

Numa mistura quente entre política e religião, à academia populista de implante político, juntar-se-á outra academia chefiada pelo cardeal Raymond Leo Burke para levar a cabo o conservadorismo católico.

A Santa Sé não toma posição oficial sobre o assunto: a Cartuxa é património do Estado italiano. Mas, entretanto, Lorenzo Loppa, bispo da diocese de Anagni-Alatri, a que pertence pastoralmente a Cartuxa, fez mea culpa através dos meios de comunicação social, por duas vezes: “Quando os monges estavam prestes a sair, fiz várias diligências junto de outras ordens religiosas. Mas em vão. Hoje estou triste e preocupado porque vejo a Cartuxa entregue aos inimigos do Papa Francisco.” No momento das negociações para a concessão, foi ele que escreveu também uma carta recomendando ao DHI no Vaticano para fazer pressão junto do Governo italiano.

Talvez o bispo tivesse ficado preocupado porque os habitantes de Collepardo manifestaram o seu desagrado para com ele e para com o abade de Casamari, porque “entregaram” a “nossa” Cartuxa aos “estrangeiros”. Além disso, os habitantes da pequena vila estão muito aborrecidos porque estão a ser apelidados de “extrema-direita”. “Não queremos ser apelidados de fascistas. A política deixou que a nossa Cartuxa ficasse entregue a essas pessoas. Nenhum político, nem o bispo nem o abade pediram a nossa opinião sobre o seu destino”.

A marcha sobre Trisulti

Foi nos finais de Dezembro que ocorreu a primeira marcha de protesto organizada pela Comunità Solidali, uma rede de cidadãos e associações locais, contra a criação de uma escola nacionalista e populista na Cartuxa.

Os habitantes de Collepardo assistiram de olhos atentos, mas desconfiados. “Só queremos que a Cartuxa volte a ser o que era, mas já não há monges... E quando entra a política nas coisas da Igreja, já não há nada a fazer”, comentavam, enquanto algumas centenas de pessoas, vindas de toda a Itália, marchavam até à Cartuxa, seis quilómetros de subida, entre árvores milenárias, no caminho de São Bento.

O presidente da Câmara de Collepardo, Mauro Bussiglieri, entretanto, pensa apenas no retorno económico que uma eventual escola nacionalista poderia dar ao território — com alto nível de desemprego -— mas não consegue nem cobrar os impostos camarários à DHI. Até hoje, “os tios americanos” não pagaram nem um tostão…

Depois da marcha, o caso chegou ao Parlamento,com a interpelação feita por Nicola Fratoianni, da Sinistra Italiana, pedindo esclarecimento sobre a concessão ao DHI. Com extremo embaraço, o subsecretário da Cultura, Gianluca Vacca, do Movimento 5 Estrelas, remeteu a responsabilidade para o Governo anterior, afirmando, porém, que em nenhuma alínea do edital havia a possibilidade da criação de uma escola política, mas apenas a valorização e a manutenção do monumento nacional.

Estranhamente, o contrato de concessão foi registado, com pagamento de impostos à Autoridade Tributária, apenas alguns dias depois da interpelação parlamentar, a 28 de Janeiro de 2019.

Uma segunda marcha foi organizada a 16 de Março, para pedir a revogação da concessão. O caso voltou ao Parlamento, onde o próprio ministro Alberto Bonisoli, do Movimento 5 Estrelas, afirmando a sua distância face ao “obscurantismo” declarado pelos expoentes do DHI, garantiu que nenhuma escola política podia ser feita na Cartuxa, mas, como infelizmente o contrato de concessão tinha sido assinado pelo Governo anterior, só cabia ao actual a vigilância sobre o respeito do mesmo.

“Foi pena que o próprio ministério tivesse dado em concessão um monumento do Estado a uma fundação com um curriculum ‘incoerente’, sem um projecto pormenorizado, com um edital que impede, de facto, ao próprio ministério exercer qualquer verificação e controlo periódico”, afirma o advogado Felice Maria Spirito.

É mais do que evidente que a alienação (material e moral) do património cultural italiano nega, na raiz, a própria Constituição da República. Mas era impossível imaginar-se que até mesmo um monumento preciosíssimo daquele património se tornasse a base italiana da propaganda do pensamento intolerante e inquietante de Steve Bannon e Donald Trump.

O acto mais recente desta saga, cujos resultados estão ainda longe de estar concluídos, foi a 4 de Abril, quando a Comunità Solidali entregou cerca de duas mil assinaturas ao ministro da Cultura pedindo a revogação da concessão ao DHI, devido às graves ilegalidades do próprio concurso.

E se um silêncio endurecedor das forças políticas locais e nacionais reinou até agora, as denúncias dos media e as marchas de cidadania fizeram despertar a atenção da opinião pública italiana e internacional sobre este abuso, antes administrativo, mas que adquiriu um grande valor simbólico e político, a poucos dias das eleições europeias.