Lisboa abre os seus conventos e pergunta: o que vamos fazer com eles?
Deve um antigo convento ser transformado numa discoteca? E as obras podem ser iguais às de qualquer outro edifício? O “Open Conventos” lança a discussão, mas sobretudo mostra ao público os muitos tesouros do património religioso que raramente são visíveis.
“Isto sim! Isto é que é um corredor conventual”, rejubila Margarida Montenegro ao subir o último degrau das escadas. Daquele local avista-se um corredor largo, comprido e sólido com portinholas de um lado e de outro e, ao fundo, a luz e o Tejo a jorrar.
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“Isto sim! Isto é que é um corredor conventual”, rejubila Margarida Montenegro ao subir o último degrau das escadas. Daquele local avista-se um corredor largo, comprido e sólido com portinholas de um lado e de outro e, ao fundo, a luz e o Tejo a jorrar.
A directora da Cultura da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), que visita o Convento de São João de Deus pela primeira vez, não se coíbe de dar sugestões: “Eu mandava tirar isto e ficava com o lajedo à vista.” Refere-se aos mosaicos do chão, em dois tons de cinzento, muitíssimo mais recentes do que o chão que revestem e as paredes grossas de que são vizinhos.
Os anfitriões, dois oficiais da Guarda Nacional Republicana (GNR), sorriem com benevolência e explicam que há certos cuidados a ter em conta, já que o convento funciona há muito como centro clínico para os militares e sua família.
São João de Deus, com entrada pela Rua Presidente Arriaga, à Pampulha, em Lisboa, é uma das 26 casas conventuais que vão abrir ao público nos próximos dias 24 e 25 de Maio, numa iniciativa a que se chamou “Open Conventos”. O programa, organizado pela Santa Casa, o Patriarcado, a Câmara e a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, inclui itinerários por conventos que estejam próximos, visitas guiadas e livres. Será uma oportunidade rara para aceder a alguns espaços que estão habitualmente vedados a olhares curiosos.
É o caso de São João de Deus, mas também o das Trinas do Mocambo (onde funciona o Instituto Hidrográfico), o Mosteiro de São Bento (Assembleia da República), o Convento dos Paulistas (na Calçada do Combro) ou o Convento do Bom Sucesso, onde está instalado um colégio com o mesmo nome.
Para apreciar devidamente o Convento de São João de Deus não se pode julgá-lo pela fachada que exibe para a Presidente Arriaga, onde, do outro lado da rua, fica o Convento de São Francisco de Paula, também incluído neste evento. Melhor seria vê-lo do rio, mas não demasiado perto da cidade, porque entre ele e o Tejo erguem-se os navios e contentores do Porto de Lisboa e os prédios da Av. 24 de Julho.
Não foi sempre assim. Em 1629, quando o convento foi fundado por António Mascarenhas, deão da Capela Real, para albergar os frades da Ordem Hospitaleira de São João de Deus e prestar assistência aos desvalidos, o rio vinha quase beijar-lhe a cerca. Uma situação que aliás se manteve até meados do século XX.
“Isto pertencia à Ordem dos Carmelitas Descalços. Já havia aqui alguns edifícios”, explica o major Nelson Santana, actual responsável pelo edifício. O fundador do convento comprou as casas existentes, promoveu as obras necessárias e deixou como legado (em 1637, data da sua morte), um edifício que viria a ganhar imponência na paisagem lisboeta.
Uma das suas características mais curiosas é o claustro, só com três lados, pois o quarto é aberto à cerca e ao rio. Da cerca já pouco resta, mas a GNR mantém ainda um pequeno talhão onde crescem limoeiros, uma figueira e uma nespereira. “Estamos sobre a Rocha do Conde de Óbidos, é um terreno muito estável”, comenta Nelson Santana abeirando-se da grade. Foi por isso que o convento passou relativamente incólume pelo Terramoto de 1755.
Virando costas ao rio, o grande casão amarelo evidencia o muito que lhe mexeram nestes quase 400 anos: o rés-do-chão dos claustros, outrora uma galeria arqueada, foi ocupado por enfermarias; várias antigas janelas estão fechadas; aqui e ali pontuam caixas de ar condicionado.
A maior mexida, no entanto, foi o desaparecimento da igreja. Hoje entra-se pelo que foi a sua porta e dá-se de caras com uma recepção hospitalar, cheiro etílico incluído. A julgar pelo seu pé-direito e por se saber que, em finais do século XVII, o altar-mor foi dourado, imagina-se a grandiosidade do que aqui estava. A igreja foi desactivada pouco depois da extinção das ordens religiosas (1834), sendo sucessivamente ocupada por vários quartéis até vir ao usufruto da GNR, em 1919.
Do convento a discoteca?
Ainda se consegue vislumbrar um pedacinho da magnificência da igreja na actual capela hospitalar. É um exíguo espaço no primeiro andar, criado numa antiga capela lateral da igreja, e que desta aproveita um grande arco, onde é possível verem-se motivos florais coloridos. Ali também se encontra uma pintura mural, já do século XX, representando Nossa Senhora das Dores.
Mas o maior tesouro deste local são os painéis de azulejos. Mal se entra no edifício conventual, à direita da antiga igreja, surgem grandes painéis azuis e brancos com cenas da vida de São João de Deus. Diz o major Santana que o santo, português de nascença, “fez a transição entre a assistência clínica medieval e a assistência clínica moderna” e que a sua ordem de frades se veio instalar em Portugal no princípio do século XVII, em pleno domínio filipino.
É por esse motivo que os painéis de azulejos que do varandim do convento, lá no alto, estejam ‘legendados’ em castelhano. Eles mostram “A virtude calando a riqueza”, “A virtude entre a avareza e a dissipação” e “A alegoria do silêncio”.
A visita guiada ao Convento de São João de Deus insere-se num dos itinerários do “Open Conventos”, o relativo à zona da Pampulha, e que ainda passará por São Francisco de Paula, por Santo Alberto (Museu Nacional de Arte Antiga) e pelos Marianos (actual Igreja Evangélica Lusitana).
Margarida Montenegro destaca a importância que os conventos foram tendo na vida de Lisboa, sobretudo os que tinham funções de educação, saúde, acolhimento. Com esta iniciativa pretende-se não só reavivar essa memória como também “alertar as pessoas para a importância do património histórico e artístico e para a sua salvaguarda”, diz a directora da Cultura da SCML.
Mas não se fica por aqui. O programa inclui, logo a abrir, um debate sobre “O que fazer com os conventos de Lisboa?”, que Margarida Montenegro descreve como uma reflexão necessária. “Será que os futuros usos a dar aos conventos podem ser um uso qualquer? Se eu quiser pôr uma discoteca, posso?”, questiona. Esta discussão já não é propriamente uma novidade. Depois da extinção das ordens e do progressivo abandono dos edifícios, “muitas cercas conventuais foram usadas para dar lugar a novos arruamentos, novas urbanizações, jardins”, lembra. “A dinâmica urbana teve de voltar a reorganizar o seu espaço, mas agora com o edificado conventual.”
No painel vão estar representados a câmara de Lisboa, a Direcção-Geral do Património Cultural, o Patriarcado, a Santa Casa e a Universidade Nova. “É importante discutir se uma reconversão destes edifícios pode ser feita como se faz de um outro edifício qualquer, sem valor histórico ou patrimonial”, diz Margarida Montenegro. E deixa já uma pista para a conversa: “A reconversão de um edifício destes tem de incluir alguma ética.”
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