Ser Lei de Bases ou Lei de Nada?
Nota-se uma perturbadora incapacidade para pensar o problema da habitação fora do insuficiente quadro legislativo actual.
Portugal tem 2% de habitação pública, uma percentagem miserável mesmo se considerarmos a média do ultra-liberalizado mercado habitacional da União Europeia, mas este governo anunciou o objectivo de atingir os 5% de habitação pública até 2024. Importa perceber como.
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Portugal tem 2% de habitação pública, uma percentagem miserável mesmo se considerarmos a média do ultra-liberalizado mercado habitacional da União Europeia, mas este governo anunciou o objectivo de atingir os 5% de habitação pública até 2024. Importa perceber como.
Sendo o investimento em habitação pública desaconselhado pela UE – para quem o mercado e a concorrência tudo resolvem – e, consequentemente, não comparticipado pelos seus fundos estruturais ou de coesão, sabemos que este investimento terá de ser feito exclusivamente a partir do Estado. Mas onde e o que é que se poderá construir?
Se esta operação se destina a construção nova, importa perceber que estaremos a desenhar novos territórios urbanos do zero, com os problemas que lhes estão associados e, em muitos casos, com elevados custos infra-estruturais. Se esta operação se destina à reabilitação de fogos, importa perceber que se terá de operar sobretudo pela compra de património privado. Mantendo-se tudo como está, e dando de barato que o Estado não quererá colocar mais lenha na fogueira exercendo direitos de preferência que dão robustez ao aumento dos preços nas áreas mais centrais das cidades, esta produção de habitação pública cingir-se-á às zonas do território nacional em que não existe qualquer pressão urbanística, o que, grosso modo, significa aquisições em lugares onde poucos querem morar.
Como se prova estamos num impasse, mas que poderá ser resolvido com uma medida simples que a 12/04/2018 a Câmara Municipal de Lisboa entendeu aprovar como recomendação ao governo e constante no projecto de Lei de Bases de Habitação do PCP: o direito de preferência do Estado passar a ser exercido pelo valor patrimonial tributado.
Do ponto de vista prático, a situação actual é um absurdo. O Estado faz as suas contas e atribui um determinado valor ao imóvel. O proprietário é tributado em função desse valor mas, se o Estado entender exercer os direitos de preferência na venda desse imóvel, terá de esperar pela consulta ao mercado e pagar o valor que derem por ele. Não desvalorizando a necessidade de actualizar os valores patrimoniais, não creio que racionalmente, e abstraindo-nos de pensar no nosso quintal, possa ser questionável a legitimidade do Estado exercer os direitos de preferência pelo valor que lhe reconhece em sede de tributação, tal como sucede noutros países, e para não estar sujeito a participar na roleta da especulação imobiliária.
Sendo certo que esta medida abrandará o mercado das vendas, ela produzirá dois efeitos que me parecem interessantes para a regulação deste mercado e para cumprir as metas do governo: 1) o Estado poderá adquirir imóveis a preços não especulativos em zonas centrais das cidades; 2) os proprietários deixarão de considerar a compra e venda como opção para obter elevados rendimentos.
Não tenhamos dúvidas que esta medida não será implementada sem polémicas. Associações de grandes proprietários e sociedades de advogados vocacionadas para a compra e venda de imobiliário gritarão pela sua inconstitucionalidade e tentarão declarar-se porta-voz de todos os proprietários, a maioria da população. Ora, talvez seja interessante colocar nesta medida uma cláusula de salvaguarda permitindo que não se aplique o direito de preferência pelo valor patrimonial a imóveis que são vendidos uma vez em dez anos, diferenciando-os dos que são transaccionados sucessivamente.
Ao passar uma vista de olhos sobre os diferentes pronunciamentos de instituições públicas sobre os projectos de lei dos diferentes partidos, nota-se uma perturbadora incapacidade para pensar o problema da habitação fora do insuficiente quadro legislativo actual, não se fazendo sequer o esforço de perceber que muitas das propostas ensaiadas e vistas como radicais plasmam boas respostas ensaiadas noutros países. É responsabilidade dos actuais deputados aceitar o desafio de aprovar uma Lei de Bases que dê novos instrumentos transformadores para políticas de habitação ou produzir um articulado inócuo que permita que a situação actual se arraste por mais uns anos.