Uma comenda de mil milhões
Não vai ser a perda das comendas que há-de retirar o sorriso cínico de Berardo. Nem a devolução de colares e de medalhas será suficiente para mitigar os danos que o empresário causou ao país
A pressa, o afinco e o consenso com que todo o país político se muniu para retirar as comendas recebidas que Joe Berardo ganhou nos gloriosos anos da irresponsabilidade nacional são reveladoras de incómodo, indignação e instinto punitivo. Mas revelam também a incapacidade do país em ajustar devidamente as contas com esse passado que continua a pairar sobre o presente como um fantasma perturbador. Não vai ser a perda das comendas que há-de retirar o sorriso cínico de Berardo. Nem a devolução de colares e de medalhas será suficiente para mitigar os danos que o empresário causou ao país. Não é assim que se fazem esquecer as cumplicidades espúrias entre o dinheiro e a política que criou Berardo, as dívidas e as comendas.
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A pressa, o afinco e o consenso com que todo o país político se muniu para retirar as comendas recebidas que Joe Berardo ganhou nos gloriosos anos da irresponsabilidade nacional são reveladoras de incómodo, indignação e instinto punitivo. Mas revelam também a incapacidade do país em ajustar devidamente as contas com esse passado que continua a pairar sobre o presente como um fantasma perturbador. Não vai ser a perda das comendas que há-de retirar o sorriso cínico de Berardo. Nem a devolução de colares e de medalhas será suficiente para mitigar os danos que o empresário causou ao país. Não é assim que se fazem esquecer as cumplicidades espúrias entre o dinheiro e a política que criou Berardo, as dívidas e as comendas.
Para lá chegarmos, é fundamental que se comece por questionar o mérito dessa prática de dar comendas a torto e a direito que traz até hoje a rábula de Almeida Garrett sobre a multiplicação de honrarias da monarquia liberal – “Foge cão que te fazem barão. Para onde, se me fazem visconde”. No Portugal deslumbrado com os fundos europeus, do dinheiro fácil e da promiscuidade barata, bastava ser rico, estar de pé firme na oligarquia da capital para se merecer uma distinção. Berardo não foi o criador dessa cultura; foi sim uma das suas mais exuberantes criações. Puni-lo por se ter tão perfeitamente integrado nesse caldo venal de vícios e favores faz todo o sentido – até para que não continue a gozar com os brandos costumes e com a impunidade alimentada pela lentidão da Justiça. Mas jamais apagaremos esses dias levaram o país até perto da bancarrota com gestos simbólicos.
Caímos assim na essência da Operação Marquês. No julgamento dessa nódoa da história nacional recente, nessa tentativa de uma elite plutocrata criar um sistema de poder tentacular. Se Berardo entrou nesse jogo a convite, se hoje pode dizer que não tem dívidas e se não se vislumbram meios de a Justiça o forçar à verdade é porque, no essencial, nada mudou. Pior: enquanto os tribunais se limitarem a arrastar os processos, enquanto não tiverem meios eficazes, enquanto não forem capazes de punir os “golpes de estado” de pessoas como Berardo, nada mudará. É bom que Portugal seja um Estado de Direito, mas o que o circo do empresário madeirense veio revelar é que, numa questão essencial para a defesa dos valores colectivos, esse Direito se continua a escrever por linhas tortas. Vamo-nos, por isso, contentando com a retirada das comendas.