Paulo Amado: a gastronomia vai ser uma “ópera completa”

O homem por trás de muitos dos eventos ligados à gastronomia em Portugal, do Congresso dos Cozinheiros às Food Weeks de Lisboa e do Porto, aposta nos cozinheiros como actores de mudanças sociais.

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Paulo Amado, com couves, em frente ao Teatro Nacional D. Maria: a "ópera completa" Rui Gaudêncio

Paulo Amado começou a reparar que nas entrevistas que dava dizia muitas vezes que “não era da gastronomia”. Frase estranha para quem anda nisto há vinte anos, para quem dirige aquela que é, actualmente, a única revista de gastronomia portuguesa, a Inter magazine (e um site, o Etaste), para quem está ligado à Lisbon Food Week (e, mais recentemente, à Porto Food Week), ao Concurso Chefe Cozinheiro do Ano, ao Jovem Talento da Gastronomia, ao Congresso dos Cozinheiros e a vários outros eventos nesta área.

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Paulo Amado começou a reparar que nas entrevistas que dava dizia muitas vezes que “não era da gastronomia”. Frase estranha para quem anda nisto há vinte anos, para quem dirige aquela que é, actualmente, a única revista de gastronomia portuguesa, a Inter magazine (e um site, o Etaste), para quem está ligado à Lisbon Food Week (e, mais recentemente, à Porto Food Week), ao Concurso Chefe Cozinheiro do Ano, ao Jovem Talento da Gastronomia, ao Congresso dos Cozinheiros e a vários outros eventos nesta área.

Então porque o dizia? “Porque não achava satisfação plena” no que estava a fazer – ou, talvez, na forma como o estava a fazer. “Não me chegava, não me satisfazia.” O que este antigo estudante de Direito, que é também autor de livros (um dos quais sobre a aventura do avô que partiu em direcção a Marrocos, levando a família, num barco a remos) e praticante de trompete queria era “uma ópera completa”. É para aí que, acredita, irão evoluir os seus projectos – e é por isso que para este artigo propõe ser fotografado em frente ao Teatro D. Maria II segurando um molho de couves.

Começam já a surgir sinais de que esse sonho pode tornar-se realidade: “No último Congresso dos Cozinheiros, que juntou quase mil pessoas, estava a brotar uma perspectiva artística. Nestes congressos já tive designers, fotógrafos, street artists. Quero muito ter bandas. Se calhar, no futuro até pode deixar de ser um congresso de cozinheiros.”

Fechar o universo dos cozinheiros nas questões técnicas da cozinha é algo que para Paulo Amado não faz sentido. “Aquilo tem que ser o espelho da vida das pessoas, não estou interessado em fazer um elevado momento técnico isolado. Quero um elevado momento técnico, mas que seja como a nossa vida – estás a ver um filme, mas continuas a dar a mão, a beijar, a comer, a passear. Não ficas o dia inteiro sentado num seminário.”

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Quando chega para a entrevista, Paulo traz com ele um folar de Olhão, a sua terra (e de uma família de “guerreiros”, de “malta a viver”, o que o terá muitas vezes motivado), e três números da Inter magazine, a revista que é a montra mais completa do que ele pretende fazer. Numa das capas está uma jovem síria do projecto Mezze, o restaurante de comida do Médio Oriente que abriu no Mercado de Arroios, em Lisboa, criando emprego para refugiados sírios em Portugal; noutra, espreitando por trás de uma máscara, está a street artist Tamara Alves, braços tatuados e t-shirt preta proclamando “Animal Rights”; e na terceira, Mateus Freire, cozinheiro actualmente à frente da cozinha do restaurante Faz Frio.

Cada uma destas capas, diz Paulo, é um statement. “Com a primeira, que fala do Mezze, queríamos dizer que interessa ampliar aquele espírito que a restauração pode ter. A da Tamara é para dizer que há gente de fora da restauração que pode ter um papel. E a do Mateus que há malta nova a trabalhar para outros, mas que constitui o grosso do mercado, e esse é o ciclo que sinto que agora está a acontecer. O Mateus espelha uma massa de gente que está a construir o novo Portugal.”

Paulo tem “o radar sempre ligado” e, andando nisto há duas décadas – comprou a revista (fundada em 1989) em 2002, quando tinha 27 anos –, facilmente detecta tendências. Se bem que, sublinha, faça mais do que isso. “Há linhas e eu não estou perante a linha à espera que ela se construa. Eu puxo”, diz, dando como exemplo um evento que organizou recentemente no Porto chamado Pensar Cozinha. “Foram pessoas falar, outras faziam perguntas, só na onda do pensar. Acho que é preciso gente com maior capacidade de se expressar e fiz um evento a fomentar essa ideia de que é possível pensar a cozinha.”

Durante muitos anos, recorda, estivemos na “lógica do prato” – “se faziam um bom prato eram bons chefs, não interessava se sabiam falar ou não”. A cozinha portuguesa evoluiu muito e Paulo assistiu a isso, incluindo os excessos de todo o processo de crescimento. “Sou do tempo em que estávamos no máximo da inspiração francesa, [Alain] Ducasse era um deus. Chegámos a fotografar para a revista um risotto de champanhe com trufas e vieiras!”. Eram tempos em que pôr um chef de cozinha a falar, a manifestar uma opinião, era tarefa a tocar o impossível.

Hoje está-se nos antípodas disso, as preocupações e os valores são outros. “Um dos temas do Pensar Cozinha foi o território e veio o cozinheiro do Fava Tonka [restaurante vegetariano de Leça da Palmeira] fazer um prato em que de repente sacamos dois temas: território e ausência de proteína animal.” É a provocação necessária para iniciar o debate.

Reconhece que neste momento “é um fetiche ter um cozinheiro a comentar um assunto qualquer”. Mas “eles são mais do que isso”, acredita. “São actores sociais, têm uma palavra a dizer sobre temas da sociedade, um deles, muito evidente e que é uma necessidade do mundo, é a sustentabilidade.”

Perguntamos-lhe em jeito de provocação: “Não há limites para isso? Não estaremos a pedir-lhes de mais? Não fazemos o mesmo com os banqueiros ou os médicos.” Paulo tem uma resposta para isso também: “Porque não? Imagina, por exemplo, que os banqueiros adoptavam a causa do microcrédito e disponibilizavam mais dinheiro para as pessoas fazerem os seus negócios.”

Tudo está a começar. “Para já, estamos na Primavera, não há sequer flores, estamos ainda a plantar coisas.” Os temas estão aí, “desde o território, o produto, se é português ou não, quando é que cá chegou, se tem químicos ou não, quem é o produtor, quem faz o comércio, a distribuição, as técnicas, as receitas, as diferenças entre arte e artesanato.”

A fileira da gastronomia é grande e abrange muita gente em áreas diferentes. Depois de duas décadas a sobreviver nesta área, atravessando três crises e garantindo que a Inter magazine continuava a existir, está optimista: “Quando comecei a ter uma maior consciência social, uma das coisas que me deixou muito contente foi ter descoberto que em Portugal tudo é possível. Mete-se as mãos na massa e vai-se fazer. É um país em construção.”

Os objectos de Paulo Amado 

1. Sou estudante de trompete e vejo o Wynton Marsalis em concertos pelo mundo. No ano passado vi-o em Marciac, Londres e Nova Iorque. Destaco o nome de Ricardo Toscano e este seu álbum na cena jazz em Portugal. É uma jovem confirmação do jazz e quiçá mais um nome mundial. Tem tudo.

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Rui Gaudêncio

2. Não descansei enquanto não agarrei todas as edições da obra pública por Herberto Hélder em vida. Este será porventura o mais especial, pois é a primeira edição do autor com correcções feitas pelo seu próprio punho.

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Rui Gaudêncio

3. Interessa-me a expressão artística e a singularidade feroz e humana de Tamara Alves. Há anos que colabora comigo na revista Inter magazine. Esta ilustração deu nome a um evento anual de convívio entre chefs e de celebração da matéria-prima.

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Rui Gaudêncio