“Partido da Lava-Jato” quer levar Sérgio Moro para a presidência do Brasil

Marcelo Nobre, advogado brasileiro que integrou o Conselho Nacional de Justiça, considera que a democracia está em risco no Brasil. Na sua opinião, Bolsonaro pré-indicou Moro para o Supremo Tribunal Federal para não lhe fazer frente.

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Marcelo Nobre, advogado e ex-membro do Conselho Nacional de Justiça do Brasil Adriano Miranda

O advogado Marcelo Nobre, que entre 2008 e 2012 foi membro do Conselho Nacional de Justiça, uma instituição que zela pela autonomia do poder judiciário, teme pela democracia no Brasil. Na semana em que Jair Bolsonaro falou num acordo para nomear o seu ministro da Justiça que dirigiu a operação anticorrupção Lava Jato, Sergio Moro para o Supremo Tribunal Federal (acordo que depois negou), o filho de Freitas Nobre, um resistente à ditadura militar brasileira, esteve no Porto a falar sobre o combate à corrupção, a convite da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e da Academia de Jurisprudentes de Língua Portuguesa. Numa entrevista recente à Folha de São Paulo Nobre falou num “Partido da Lava-Jato” que tem passado como um tractor sobre a Constituição.

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O advogado Marcelo Nobre, que entre 2008 e 2012 foi membro do Conselho Nacional de Justiça, uma instituição que zela pela autonomia do poder judiciário, teme pela democracia no Brasil. Na semana em que Jair Bolsonaro falou num acordo para nomear o seu ministro da Justiça que dirigiu a operação anticorrupção Lava Jato, Sergio Moro para o Supremo Tribunal Federal (acordo que depois negou), o filho de Freitas Nobre, um resistente à ditadura militar brasileira, esteve no Porto a falar sobre o combate à corrupção, a convite da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e da Academia de Jurisprudentes de Língua Portuguesa. Numa entrevista recente à Folha de São Paulo Nobre falou num “Partido da Lava-Jato” que tem passado como um tractor sobre a Constituição.

Porque fala do “Partido da Lava-Jato”, referindo-se a quem conduziu a investigação? Existe um projecto de poder por detrás da investigação?
Quando eu falei em “Partido da Lava-Jato”, referi-me a alguns agentes públicos que actuam politicamente nas funções da investigação, da acusação e na de julgar. São alguns polícias, alguns membros do Ministério Público e alguns juízes de uma geração mais jovem, que ingressaram em carreiras públicas e passaram a fazer política por meio dos seus cargos, o que acabou originando o que tenho chamado “Partido da Lava-Jato”. A maior expressão deste grupo é Sérgio Moro, um ex-magistrado de primeira instância que, ao deixar a magistratura para assumir um cargo político de expressão, demonstrou que existe um “partido” e um projecto de poder.

No dia 12 o Presidente Bolsonaro revelou que, pouco depois de ser eleito, assumiu com o então juiz Moro o compromisso de o indicar para o Supremo Tribunal Federal (STF), assim que abrir uma vaga, como compensação por ele ter abandonado a carreira de 22 anos de magistratura para ser ministro. É ele o líder desse “partido”?
Moro é a principal expressão, mas não a única. Há alguns outros integrantes do Ministério Público agindo politicamente, como o procurador Deltan Dallagnol, também da Lava-Jato e homem de confiança de Moro, que, recorrentemente, ataca publicamente decisões do STF, jogando a sociedade e parte da imprensa contra a instituição, o que é uma irresponsabilidade muito grande. As instituições não podem render-se ao clamor popular. Não se pode prender alguém, como ocorre na Lava-Jato, por acto de vontade. Uma prisão deve ser sempre um acto de direito. Da mesma forma, não se pode condenar publicamente um acusado, antes do devido processo legal. Em um Estado de direito pleno, o rito processual deve ser observado. E não é isso que tem acontecido em grande parte da Lava-Jato.

Sérgio Moro quer ser o próximo Presidente da República?
Apesar de o Presidente Bolsonaro estranhamente ter anunciado com a antecedência de 18 meses que indicará Moro para o STF, não tenho dúvida de que ele, percebendo que a sua popularidade é maior que a do próprio Presidente – pesquisas indicam isso – cogite, sim, ser Presidente da República. A sua conduta tem revelado que tem o objectivo de ocupar a presidência. O facto de o Presidente Bolsonaro vir a público para dizer que vai indicar o Moro ao STF mostra, para mim, pelo menos três coisas relevantes: a primeira é que Moro desagrada a Bolsonaro na função de ministro e que o Presidente não conseguirá ficar nessa situação por mais quase quatro anos; a segunda é que Bolsonaro não consegue demitir o seu ministro da Justiça em razão da popularidade dele; a terceira é a de que o Presidente o deixará numa situação constrangedora por mais de um ano e seis meses, o que é uma eternidade em política. Nesse período, Moro não poderá indispor-se ou brigar com o mundo político, pois, para ser aprovado para o STF, precisará de obter no Senado Federal, no mínimo, 41 votos.

Qual o poder efectivo que tem o STF no desfecho desses processos hoje em dia?
O STF tem a palavra final sobre todas as investigações e processos. Isso faz com que ele tenha o poder máximo. É por essa razão que sofre tanta pressão. Estão tentando intimidar o STF. Alguns dos principais personagens da Operação Lava-Jato manifestam-se de várias formas, inclusive pelas redes sociais, dizendo como o STF deve votar em determinados casos, buscando jogar a população contra o Supremo, caso decida diferentemente daquilo que desejam. Espera-se, no entanto, que os ministros do Supremo tenham a independência e a serenidade necessárias para se manter acima das pressões.

Tem algum interesse próprio nessa investigação? 
Não tenho interesse pessoal, nem profissional. Não defendo ninguém investigado pela Lava-Jato e nunca fui filiado em nenhum partido político.

Mas reconhece alguma verdade nos factos que sustentam o processo, ou não?
Reconheço verdade naqueles processos que tiveram um julgamento justo, ou seja, naqueles em que a defesa mereceu atenção, sendo levada em consideração na decisão, com base em provas produzidas e não apenas no que foi dito em delações que, muitas vezes, são baseadas em mentiras oportunistas que buscam apenas benefícios de penas mais leves. É importante esclarecer que a delação não se encerra em si mesma; ela é uma espécie de guião para se buscar provas sobre o que disseram. Houve um tempo em que o pêndulo ficava preso do lado da impunidade, e, hoje, este mesmo pêndulo está preso na outra extremidade, que é a do punitivismo. Precisamos urgentemente de encontrar o equilíbrio.

Considera que a democracia está posta em causa no Brasil? Quer dar exemplos concretos do ataque às instituições democráticas?
Sim, considero que a democracia está em risco. As gerações anteriores que actuaram na política no Brasil não produziram os seus sucessores. Com o descrédito dos políticos e a criminalização da política, os jovens afastaram-se dela. Assim, a política passou a ser feita por algumas pessoas sem vocação para negociar e obter consensos. Muitos daqueles jovens que gostariam de ir para a política desmotivaram-se e passaram a fazer política em instituições como a Polícia Federal, o Ministério Público e a magistratura. É desapropriado e perigoso fazer política nesses ambientes. Para a nossa sorte, não são todas as pessoas que compõem essas instituições que agem ou concordam com esta forma de actuação. Contudo, ela é indevida e gerou abusos e esses excessos também se voltam contra as instituições como a do Judiciário. Se permitirmos que essas esferas sejam intimidadas, a democracia estará em perigo.

Em Portugal, tem-se discutido o valor da delação premiada no processo penal. Mas é um tema polémico. Quais as vantagens e desvantagens que constata neste expediente processual?
A delação é inegavelmente um instrumento importante na busca da verdade em um processo criminal, mas também pode ser perigosa, dependendo da forma como é obtida e do uso que se faz dela. Em Nova Iorque, por exemplo, se algum membro do Ministério Público insinua que deseja que o colaborador conte algo sobre determinada pessoa, esse agente é preso. No Brasil, inúmeras delações foram induzidas vergonhosamente, com pressões para que falassem sobre determinadas pessoas de forma directa. Muitas delações na Operação Lava-Jato foram selectivas; não foram entregues ao processo na sua integralidade. Em muitos casos, só foram disponibilizadas partes com determinadas pessoas, conforme interesses estratégicos, o que é inadmissível em um processo justo e em um país democrático.

O poder judiciário hoje anda a reboque das redes sociais? Só no Brasil ou é uma tendência global?
Todos nós nos preocupamos com o que os outros pensam e dizem de nós, e o poder judiciário é composto por seres humanos. As redes sociais, hoje, são a arena romana de antigamente. Veja: a sociedade romana enchia o Coliseu sem conhecer a acusação que pesava sobre aquela pessoa que era jogada na arena e sem qualquer informação mínima para julgá-la. E, mesmo assim, colocava o polegar para cima ou para baixo, decidindo se o acusado viveria ou morreria, exactamente como hoje acontece com os likes e dislikes das redes sociais, que elevam ou matam as reputações. Entendo que essa tendência é mundial.

Durante a ditadura, o seu pai foi um dos lutadores pela redemocratização. De que forma isso determinou a sua vida e as suas opções?
Como um observador privilegiado de um momento difícil da história brasileira, posso dizer que é muito ruim e preocupante ver uma nação não ter respeito pelas liberdades individuais e não prestigiar a defesa de alguém, julgando antecipadamente. Não posso aceitar que pessoas se achem acima da lei, depois de tanta luta para reconquistar a democracia. Ter a oportunidade de conviver e aprender com Freitas Nobre, meu pai, um homem preparado intelectualmente, vocacionado para servir o seu povo e a sua nação, um verdadeiro democrata, foi fundamental na minha formação e o seu exemplo motiva-me a lutar incansavelmente para preservar o Estado democrático de direito e a democracia.