O estranho caso da demolição de uma moradia histórica na Rua de Pinto Bessa
Edifício de 1913 tinha arquitectura de Francisco de Oliveira Ferreira, discípulo de Marques da Silva e Teixeira Lopes. Há 15 anos, deixou de integrar a lista de imóveis de interesse municipal. Em Janeiro, a Câmara do Porto deu um parecer positivo para novo projecto
Ainda há cerca de um mês o historiador de arte Manuel Ferreira da Silva passou na Rua de Pinto Bessa e apreciou a majestosa moradia do número 498. Estava a escrever um artigo sobre aquela casa icónica do arquitecto Francisco de Oliveira Ferreira, há muito devoluta, e reparou num aviso afixado, anunciando o início de obras. Imaginou tratar-se de uma reabilitação, sem sequer ponderar a possibilidade de a casa ser demolida. Mas aconteceu. Para o 498, informa o aviso colocado no local, está prevista a construção de um prédio de habitação de nove pisos. O parecer positivo da Direcção Municipal do Urbanismo para o projecto de arquitectura aconteceu em Janeiro.
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Ainda há cerca de um mês o historiador de arte Manuel Ferreira da Silva passou na Rua de Pinto Bessa e apreciou a majestosa moradia do número 498. Estava a escrever um artigo sobre aquela casa icónica do arquitecto Francisco de Oliveira Ferreira, há muito devoluta, e reparou num aviso afixado, anunciando o início de obras. Imaginou tratar-se de uma reabilitação, sem sequer ponderar a possibilidade de a casa ser demolida. Mas aconteceu. Para o 498, informa o aviso colocado no local, está prevista a construção de um prédio de habitação de nove pisos. O parecer positivo da Direcção Municipal do Urbanismo para o projecto de arquitectura aconteceu em Janeiro.
O caso deixou “estupefactos” vários membros do Fórum de Cidadania Porto, que esta sexta-feira fizeram chegar a Rui Moreira o seu “protesto veemente”, questionando o presidente da câmara sobre a legalidade da demolição e a existência ou não da preservação dos elementos ornamentais da fachada, como azulejos ou serralharias artísticas. “Além de revelar uma profunda ignorância dos serviços responsáveis pela sua autorização”, escreveram no email, “esta decisão poderá configurar propósitos de outra índole, em relação aos quais iremos solicitar a ajuda de quem de direito”.
A confirmar-se a não-preservação dos elementos históricos da moradia de 1913, a situação poderá configurar uma ilegalidade por violar a Lei 79/2017 levada ao Parlamento pelo projecto SOS Azulejo, disse ao PÚBLICO o historiador e especialista em azulejaria de fachada Francisco Queiroz. Essa legislação proibe qualquer demolição de fachadas azulejadas em todo o país, “salvo em casos devidamente justificados, autorizados pela Câmara Municipal em razão da ausência ou diminuto valor patrimonial relevante destes.”
A hipótese de falta de valor está para Francisco Queiroz posta de parte. O painel de azulejos que existia na casa da Rua Pinto Bessa eram uma peça única, feita propositadamente para uma obra de referência do ponto de vista arquitectónico. “Ninguém no seu perfeito juízo diria que aquilo podia ser demolido”, afirmou. Nesse sentido, um parecer dado a uma obra de arquitectura que implica o seu desaparecimento é “ilegal”.
Francisco de Oliveira Ferreira, nascido a 25 de Setembro de 1884, é o arquitecto da Câmara Municipal de Gaia e de alguns edifícios emblemáticos – como o do Clube Fenianos Portuenses ou a Clínica Sanatorial Heliantia, em Valadares. “É bastante importante no Norte do país e contemporâneo de Marques da Silva, o arquitecto que mais marcou a cidade na primeira metade do século”, contou Manuel Ferreira da Silva, especialista na sua obra.
A moradia da Rua de Pinto Bessa era o primeiro projecto de habitação do arquitecto Oliveira Ferreira no Porto e representante de uma “transição entre uma arquitectura vagamente eclética, com alguns aspectos de arte nova, e uma arte com algumas marcas portuguesas, como é o caso dos azulejos.” Guardava algumas preciosidades do trabalho de Oliveira Ferreira com o seu irmão, o escultor José de Oliveira Ferreira, e era “o último vestígio” de uma certa tipologia de habitação burguesa no Porto do início do século XX.
O doutoramento em curso de José Pedro Tenreiro debruça-se exactamente sobre a arquitectura desse tempo e tinha naquela casa um exemplo importante. Construída a pedido do comendador Manuel de Miranda Castro, era espelho de “uma forma de pensar a arquitectura e a cidade” que acabaria por se tornar modelo e ser multiplicada no Porto nas décadas seguintes.
A maioria dessas obras “seguidoras” do estilo de Oliveira Ferreira no Porto já foram demolidas. Para o arquitecto José Pedro Tenreiro há uma tragédia dupla neste caso: “Não só é uma perda da arquitectura da cidade como contribuiu para o empobrecimento da zona oriental, que ficou privada dos já poucos bons exemplos de arquitectura que lá existiam.”
A “crónica de uma morte anunciada” foi escrita por Jorge Ricardo Pinto num livro feito para a junta de freguesia do Bonfim em 2011. O edifício, que chegou a integrar o PDM do Porto, na lista de imóveis de interesse municipal, tinha sido retirado dessa zona de protecção. O geógrafo, especialista na zona oriental do Porto, sentia a “ameaça da demolição”. Na altura, recorda, o edifício estava na posse da Norma – Empresa Técnica Construtora. A mesma firma que pensou um projecto para a Quinta Amarela, junto à Avenida dos Combatentes, imóvel também retirado da lista de interesse municipal do PDM.
Tem sido uma história demasiadas vezes repetida. Só no Bonfim, Jorge Ricardo Pinto lembra-se de vários imóveis a quem foi retirada protecção e cuja narrativa foi, depois disso, alterada. “O Bloco Residencial Manuel Duarte, do arquitecto Januário Godinho, na rua de Santos Pousada, apeado em 2006; ou o edifício multifuncional (residência, escritório, armazém, fábrica) requerido por João da Fonseca Carvalho, nos anos 30 do século passado, na Avenida Fernão de Magalhães, recentemente demolido para a construção de um hotel.”
O estranho caso da Rua de Pinto Bessa, agora entregue à Pinveira – Investimentos Imobiliários (que tem como um dos gerentes Augusto Silveira, cônsul honorário da Costa do Marfim no Porto), é, pois, “uma espécie de aviso”, diz Manuel Ferreira da Silva. “A Câmara do Porto não está a ser eficaz na salvaguarda do património”, acusa: “Verificamos que tudo o que fica fora da área de protecção da UNESCO está à mercê de quem quiser, como se o Porto não fosse um todo.”
Apesar de abandonada há vários anos, a casa de Oliveira Ferreira conservava os elementos mais importantes intactos. E, por isso, o arquitecto José Pedro Tenreiro não embarca na desculpa da “degradação” para a retirada do imóvel da lista de interesse municipal. “Logo depois disso, entra um projecto que prevê a sua demolição na câmara. Deu para ver que os motivos foram os interesses imobiliários que levaram à retirada da classificação.”
Resta saber se a demolição acautelou, pelo menos, a preservação dos elementos mais icónicos da casa. Francisco Queiroz suspeita que não. Nos últimos tempos, várias pessoas comentaram com ele que o Banco de Materiais, projecto camarário que recolhe esses elementos, não está a fazer esse trabalho por falta de espaço físico para guardar esse espólio. O PÚBLICO questionou a Câmara do Porto sobre esse assunto e o parecer positivo dado a esta obra, mas não obteve resposta.