O artigo de opinião do primeiro-ministro e a Lei de Bases da Saúde
Se a redacção da futura lei de bases consagrar de forma muito clara que a existência de qualquer forma de gestão privada só existirá em situações excepcionais e devidamente fundamentadas, sendo supletiva e adoptada temporariamente, bem como objecto de avaliação quanto à sua necessidade, então verificamos que estes termos são uma garantia muito maior do que o enquadramento das USF modelo C e da própria redacção da primeira lei de bases da saúde.
Num artigo de opinião publicado no dia 1/5/2019, o primeiro-ministro abordou a questão da proposta governamental relativa à Lei de Bases da Saúde, reafirmando o primado da Gestão Pública da Saúde e referindo que o recurso à gestão privada será em circunstâncias excepcionais e devidamente fundamentadas, com carácter supletivo e adoptada temporariamente.
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Num artigo de opinião publicado no dia 1/5/2019, o primeiro-ministro abordou a questão da proposta governamental relativa à Lei de Bases da Saúde, reafirmando o primado da Gestão Pública da Saúde e referindo que o recurso à gestão privada será em circunstâncias excepcionais e devidamente fundamentadas, com carácter supletivo e adoptada temporariamente.
Referiu também que o recurso à contratualização com o sector privado e social está condicionado à avaliação da sua necessidade.
Ao contrário do que têm apregoado alguns sectores político-partidários defensores dos negócios privados à custa da saúde dos cidadãos, não é indiferente se a gestão é pública ou privada.
Em termos muito sintéticos, a gestão privada serve para maximizar o património e os lucros dos accionistas, enquanto a gestão pública visa atingir uma missão que é considerada socialmente valiosa.
Na área da Saúde essa missão assume uma importância social e humana muito mais valiosa porque é da vida e do bem-estar de cada cidadão que estamos a falar.
As discussões vivas a que temos assistido em torno da futura Lei de Bases da Saúde mostram que é uma área muito valorizada pela generalidade dos cidadãos, mas que, por outro lado, que é uma área que movimenta muitos milhões de euros.
A experiência acumulada noutros países como são os casos da Grã-Bretanha e do Canadá mostra, de forma objectiva, que as Parcerias Público-Privadas (PPP) são um instrumento de subversão a prazo dos serviços públicos de saúde e do direito humano à saúde e uma forma extrema de parasitação dos dinheiros públicos por entidades privadas.
Na Grã-Bretanha, a acção neoliberal extremista de Thatcher contra o serviço nacional de saúde inglês (NHS) utilizou estas parcerias, inicialmente chamadas PFI (Private Finance Initiative), para levar à sua quase completa destruição.
O Partido Nacionalista Escocês, há vários anos atrás, assumiu o compromisso eleitoral de iniciar o processo de acabar gradualmente as PPP em vigor naquele território, compromisso esse que determinou, decisivamente, a sua vitória e subsequente constituição do governo escocês.
Em Março passado, o anterior governo conservador liberal na Finlândia caiu por não conseguir apoios para alargar a política de privatizações na saúde, enquanto o Partido Social-Democrata conseguiu a sua vitória eleitoral opondo-se a essa privatização e defendendo, inclusive, o aumento dos impostos para assegurar a manutenção da cobertura pública dos cuidados de saúde.
Em alguns estados do Canadá, foi adoptada a sigla P3 para as PPP e era utilizada a expressão “PPP= Pagas Pelo Público”.
A primeira Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 56/79), também conhecida pela Lei Arnaut, estabelecia no seu conteúdo que:
- Podem ser estabelecidos convénios entre o SNS e instituições não oficiais ou entidades privadas, designadamente no campo da hospitalização e dos meios de diagnóstico, nos casos em que a rede de serviços oficial não assegure os cuidados de saúde, mediante normas a estabelecer pela Administração Central de Saúde.
- O SNS articula-se com a existência e funcionamento de instituições não oficiais e formas de actividade privada no âmbito do sector da saúde, sujeitas à disciplina e controlo do Estado, nos termos da Constituição.
A segunda Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/90), que ainda está em vigor, estabelece as seguintes disposições gerais:
- É apoiado o desenvolvimento do sector privado da saúde e, em particular, as iniciativas das instituições particulares de solidariedade social, em concorrência com o sector público.
- Para efectivação do direito à protecção da saúde, o Estado actua através de serviços próprios, celebra acordos com entidades privadas para a prestação de cuidados e apoia e fiscaliza a restante actividade privada na área da saúde.
- Nos termos a estabelecer em lei, pode ser autorizada a entrega, através de contratos de gestão, de hospitais ou centros de saúde do Serviço Nacional de saúde a outras entidades ou, em regime de convenção, a grupos de médicos.
- O apoio pode traduzir-se, nomeadamente, na facilitação da mobilidade do pessoal do Serviço Nacional de Saúde que deseje trabalhar no sector privado, na criação de incentivos à criação de unidades privadas e na reserva de quotas de leitos de internamento em cada região de saúde.
- A lei fixa incentivos ao estabelecimento de seguros de saúde.
Importa ter bem presente que esta lei de bases publicada por um governo do PSD visou importar para o nosso país a ideologia neoliberal na saúde implementada por Thatcher no princípio da década de 1980 através do chamado “White Paper” e da criação do apelidado “Mercado Interno”.
Com a cobertura legal desta lei de bases, o então ministro da saúde Luís Filipe Pereira publicou um decreto-lei (DL n.º 60/2003) que previa a privatização integral dos centros de saúde.
Com a mudança de governo, o então ministro da saúde Prof. Correia de Campos revogou esse decreto-lei com o DL n.º 88/2005 que, por sua vez, repristinou o DL n.º 157/99 publicado pela anterior ministra da saúde Dra. Maria de Belém.
Com essa medida legal foi aberto o processo de criação das Unidades de Saúde Familiar (USF) nos centros de saúde.
Posteriormente, foi publicado o Despacho 24100/2007, de 22 de Outubro, em vigor, onde se estabelecem os modelos de USF (A, B, C) e em que o modelo C obedece aos seguintes requisitos:
- Modelo experimental, a regular por diploma próprio, com carácter supletivo relativamente às eventuais insuficiências demonstradas pelo SNS, sendo as USF a constituir definidas em função de quotas estabelecidas por administração regional de saúde (ARS) e face à existência de cidadãos sem médico de família atribuído;
- Abrange as USF dos sectores social, cooperativo e privado, articuladas com o centro de saúde, mas sem qualquer dependência hierárquica deste, baseando a sua actividade num contrato-programa estabelecido com a ARS respectiva, através do departamento de contratualização, e sujeitas a controlo e avaliação externa desta ou de outras entidades autorizadas para o efeito, com a obrigatoriedade de obter a acreditação num horizonte máximo de três anos.
Nessa altura, surgiram diversas opiniões que expressavam o temor de que as USF em geral e particularmente este modelo C fossem antecâmaras da privatização dos cuidados de saúde primários.
Passaram 12 anos e não existe nenhuma USF modelo C, nem as outras foram privatizadas, dado que a sua implementação estava dependente de marcadas insuficiências do SNS, do estabelecimento das quotas regionais e a sua clara definição como assumindo um carácter supletivo.
Por outro lado, a discussão sobre a “predação” privada dos serviços públicos de saúde não se pode resumir às PPP, dado que os conselhos de administração dos hospitais públicos continuam a aprovar o encaminhamento de doentes para entidades privadas seja para cirurgias, seja para exames complementares de diagnóstico, o que constitui um factor de enormes gastos dos dinheiros públicos.
Simultaneamente, as administrações dos serviços públicos de saúde continuam a não fazer a prestação pública das suas contas, nem a contratualização dos hospitais tem em conta estas situações.
As PPP na saúde são quatro (Braga, Vila Franca de Xira, Cascais e Loures), tendo o governo já assumido a decisão de reinserir uma delas na esfera da gestão pública (Braga).
Se a redacção da futura lei de bases consagrar de forma muito clara que a existência de qualquer forma de gestão privada só existirá em situações excepcionais e devidamente fundamentadas, sendo supletiva e adoptada temporariamente, bem como objecto de avaliação quanto à sua necessidade, então verificamos que estes termos são uma garantia muito maior do que o enquadramento das USF modelo C e da própria redacção da primeira lei de bases da saúde.
Perante estas questões, existe uma medida adicional que se impõe: a elaboração de uma carta da gestão pública da Saúde onde estejam definidos os parâmetros a que deve obedecer esta gestão, o quadro de responsabilização e de avaliação das administrações, bem como a transparência das suas contas e dos seus indicadores de desempenho.